CAPÍTULO 82 - Boneco de Seda

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Mais um pra divertir vocês. Mas acho esse não vai ser lá tão divertido. Então já deixo aqui...

AVISO GATILHO.

Esse capítulo foi um dos mais complicados de escrever. É muito sentimento envolvido, e algo muito necessária também. Então espero que gostem. E só para avisar, não é vergonha precisar de ajuda. É necessário. Somos seres sociais e dependentes o tempo todo. Então se você estiver precisando, desabafe. Se precisar, desabafe consigo mesmo. Estou aqui por todos vocês, de coração. E sim, eu me importo pra cacete. Já perdemos muitas coisas, e muitas pessoas, para certas situações.

Vou falar sobre o CVV (Centro de Valorização da Vida), que ajuda muitas pessoas no dia-a-dia, realizando apoio emocional e a prevenção do suicídio, atendendo voluntáriamente e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, desabafar. Sigilo total por telefone, email e chat 24 horas todos os dias. Se você se sente vazio, ou com pensamentos que te sabotam o tempo, todo, converse. Eles são bons, e agradeço muito por terem ajudado pessoas muito próximas a mim quando eu nem ao menos entendia e nem sabia o que fazer.

O número de telefone é: 188.
Para mais informações, acesse o site:  www.cvv.org

Agora boa leituraaa!

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[Narrado por Luka]:

 
Ficamos olhando para todos os lados, sem saber para onde ir. Vi minha mãe, Carlim e alguns outros entrarem por uma das portas abertas e eles pareciam tão confusos quanto nós. Minha mãe e Carlim vieram o mais rápido possível até a gente.
 
Eu: — Carlim, o que tá acontecendo? Por que essas sirenes?!
 
Carlim: — Não foram vocês? – nós negamos com a cabeça. — Algum artefato perigoso presente aqui foi ativado. E para ter despertado o sistema de defesa da Câmara, deve ser muito mais forte do que o esperado.
 
Nath: — Ah, não, ele deve ter pego o bracelete...
 
Carlim: — É o quê?! Quem pegou o bracelete?!
 
Logo escutamos um berro estridente, e o som veio de uma das portas abertas ao nosso redor. Todos nós olhamos na direção do barulho, e escutamos mais um grito... e era a voz do Diogo. 
 
Rapidamente nós corremos para a porta de onde os gritos vieram. Ao entrar, atravessamos o laboratório e vimos Marcus de pé também procurando. Atravessamos as prateleiras, os corredores, até que chegamos no corredor três, onde o Tio Marcus deixou o bracelete dos Jinni preso em uma caixa de cristal, circundada por uma base de chumbo, impedindo que qualquer energia tenha acesso ao artefato. A caixa estava vazia... e Diogo estava no chão... rolando, e tentava afastar algo de sua pele.
 
Diogo: — TIRA ISSO DE MIM!!! 
 
Chegamos mais perto e vi o que acontecia. O bracelete se liquidificou, como tinha feito naquelas imagens do telão que Marcus nos mostrou, e naquela forma líquida, ele agarrou com firmeza os dedos do Diogo. Lentamente o metal dourado subia por sua mão, por seu punho, e por seu pulso, como uma serpente de ouro se enroscando em sua pele. Marcus se ajoelhou ao lado dele e tentou ajudá-lo a tirar o ouro celestial que se movia, mas foi inútil. Por mais que Marcus puxasse, ele só machucava a pele do Diogo, o fazendo gritar de dor e fazer expressões de sofrimento. Aquela coisa grudou nele e não queria soltá-lo!
 
Nath: — Pai, para! Tá machucando ele!
 
Marcus: — Eu falei que não era pra você chegar perto disso, Diogo!
 
Diogo: — Desculpe, desculpe... – ele rosnou entre os dentes, e parecia sentir ainda mais dor. Ele continuou deitado no chão tentando tirar aquilo, mas sem sucesso algum. Ele só conseguiu machucar seus próprios dedos ao tentar. 
 
Guilherme: — Deixa que eu tento! – ele se aproximou rapidamente e se ajoelhou ao lado do amigo. 
 
Guilherme agarrou o braço dele e tentou puxar, mas... ele estava envergando o braço do Diogo, e parecia estar quase quebrando-o ao meio. Ver aquilo me causou uma crescente agonia, e ouvi-lo gritar daquela forma desesperadora só estava me deixando cada vez pior. Eles estavam o machucando mais do que o metal-vivo.
 
Eu: — Guilherme, para! Você vai quebrar o braço dele! 
 
Guilherme soltou o ouro, que ainda se movia como uma serpente enroscada no punho do Diogo. O metal parece estar ignorando qualquer força que fizessem contra ele, como se a força de Marcus e Guilherme fossem absolutamente nada, nem um pouco capaz de impedi-lo de dominar o Diogo.
 
Guilherme: — Já sei o que fazer.
 
Gui levantou a mão direita aberta e um raio grosso se desprendeu de sua palma, atingindo o ouro em cheio.
 
Marcus: — NÃO!!!
 
Marcus empurrou o Gui pro lado, e rapidamente Nathalie, Luigi, minha mãe e eu nos afastamos e empurramos os outros para longe também, já prevendo o que aconteceria. Logo o material dourado reagiu, e causou uma explosão de raios e energia, com dois raios enormes acertando o peito de ambos e os lançou para bem longe, contra as prateleiras de chumbo. Diogo ainda gritava de dor. Aquilo estava se enrolando em seu braço de forma agonizante de assistir, e parecia apertar com uma força tremenda. A mão dele estava ficando roxa, e vi que seu braço estava sendo retorcido. Se aquela serpente de ouro apertasse mais, aquele pobre braço humano se partiria em pedaços. Me joguei pra perto do Diogo e segurei a mão esquerda dele. Era a única coisa que eu podia fazer. Senti o aperto poderoso daquela mão, procurando um apoio para sua dor, e eu deixei que ele apertasse-as.
 
Eu: — Calma, a gente vai tirar isso de você. – tentei parecer o mais calmo possível. Ficar desesperado só vai tornar a situação ainda mais desesperadora para ele. 
 
Diogo: — Tira isso de mim... por favor... – vi as lágrimas descendo por seus olhos e senti suas contorções dolorosas. — Está doendo... muito!!! AAHHH!!!
 
Mas mesmo que eu quisesse fazer algo, não tinha o que fazer... ou eu só não sabia o que fazer. Estava me sentindo inútil por não ter a menor ideia do que fazer para ajudá-lo. Apenas fiquei segurando a mão esquerda dele, enquanto ele me apertava com toda sua força, e batia o bracelete contra o chão, tentando se livrar dele. Mas quando olhei outra vez para aquilo, vi sangue escorrer dentre o ouro e a pele. Bastante sangue começou a jorrar, como uma fonte que acabou de ser ligada, enquanto Diogo fazia caretas de dor e sofrimento. Olhei pro tio Marcus e ele correu pro laboratório. Rapidamente ele voltou com duas pinças e pegou o braço ensanguentado do Diogo. Ele tentou colocar a pinça debaixo do mineral para separar a pele do ouro, mas arregalou os olhos e desistiu quando viu o que acontecia.
 
Eu: — O quê foi? Não dá pra tirar??? – ele negou com a cabeça.
 
Marcus: — Impossível. É tarde pra ele. 
 
Todos ficamos absolutamente calados. Só ouviam-se gemidos de dor do Diogo, e os ossos dele rangerem como metal enferrujado.
 
Ynnata: — o que está ocorrendo ali? — Marcus apenas se afastou com as mágoas na cintura e respondeu profundamente.
 
Marcus: — O material está se unindo ao DNA dele. É impossível separar agora.
 
Antony: — Isso é um bracelete mágico? De qual raça? – ele se ajoelhou ao lado do Diogo. Ele nem gritava mais, só fazia caretas de dor enquanto aquela coisa arrancava todo o sangue de seu corpo. — Talvez eu possa ajudar.
 
Marcus: — É um bracelete Djinn. – todos ficaram em silêncio, prendendo até a respiração.
 
Antony: — Primeiramente... — ele se levantou, já desistindo de examinar aquele pobre braço. — onde vocês conseguiram um bracelete Djinn?!
 
Eu: — Isso não importa agora! Tem alguma forma de parar isso?!
 
Antony: — Não, não tem! É um dos artefatos Angelicallis, não um artefato mágico normal! Temos que amputar.
 
Diogo: — Não... Por favor, não... Luka, não...
 
Eu: — Calma... — acariciei o rosto dele, molhando minha mão com suas lágrimas. — Não, isso está fora de questão.
 
Antony: — Então só nos resta... esperar. – ele estendeu os braços e afastou Marcus e eu do Diogo. O deixamos sozinho ali, se retorcendo de dor no chão, sendo molhado pelo próprio sangue.
 
Aquele líquido dourado iluminado estava subindo por seu punho lentamente, se misturando com o líquido viscoso escarlate, e rasgando a pele frágil por onde passava. Diogo já estava sem força e pálido. Seus olhos pareciam querer fechar, mas ele se esforçava para se manter acordado. Ele perdeu muito sangue, e... eu estou realmente preocupado com ele. Meu coração estava inquieto. Eu estava inquieto. Pela primeira vez na vida senti a vontade de roer vorazmente minhas unhas. 
 
Otávio: — Ele perdeu mais de sessenta e três porcento do sangue do corpo de um humano saudável. Ele não vai sobreviver.
 
Ynatta: — Cale a boca, Otávio. Não é hora pra ser frio e direto.
 
Antony: — O pirralho tem razão. Ele é um humano tentando suportar o poder de um artefato criado para uma classe de anjos. Ele não tem corpo e nem estrutura espiritual para isso. 
 
Eu: — Não! Parem de falar isso! Ele vai ficar bem! — Encolhi meus ombros. Vê-lo quase cedendo a fechar os olhos me causou um medo completamente diferente de todos os outros medos que já senti. Aquilo não era um medo comum. Era pavor. Até mesmo pior que isso. Eu estava ficando aterrorizado por dentro, mas não queria transparecer perto dos outros. 
 
Imaginar um dos meus amigos mais queridos terminar assim... imaginar tanta besteira em um momento tão curto, eu achei ser impossível, mas bati o recorde de pensamentos ruins por segundo. Mas eu jamais deixaria isso acontecer.
 
Eu: — Diogo, abra os olhos... por favor. Se concentre em mim. Seja lá o que você esteja sentindo, lute contra isso. Eu sei que estás falando na sua cabeça, e não se renda. Você não é apenas um humano. Você é o Diogo. O menino mais animado do mundo, uma preciosidade que todos nós aqui amamos e admiramos, então não ouse se entregar tão fácil. Não é culpa sua, e nem vamos te custar por tudo isso, não é sua culpa o clima com seus pais e você se sentir sozinho e abandonado o tempo todo. Nada disso é sua culpa. Você é só um moleque imaturo que está aprendendo vivendo, então continue aprendendo. Lute, como vem fazendo a vida toda.
 
De repente aquilo parou de andar para cima do braço do Diogo. Vi aqueles olhos castanhos abrirem novamente e ele conseguiu reunir um pouco de energia para manter-se acordado. Estava lutando para sobreviver, mesmo naquelas condições. E então o ouro começou a dar voltas no braço, ligando suas bordas, se tornando um bracelete grosso novamente... tão grosso e grande que foi do pulso até perto do cotovelo. Aquilo começou a tomar forma outra vez. As bordas endureceram, o material distorcido ficou liso e desenhos prateados em uma linguagem desconhecida surgiram na superfície. Diogo sentou-se no chão e olhou para o próprio braço ensanguentado. O sangue parou de cair, e ele parecia não sentir mais dor. Todos nós estávamos boquiabertos. mesmo tendo perdido tanto sangue, Diogo recobrou a cor e a força. Ele encarou toda a poça vermelha ao seu redor e ficou tão impactado quanto nós por estar conseguindo respirar sem sangue no corpo.
 
Antony: — Mas o que... filho da...
 
Victor: — Pelo que eu soube, Irmão, dos livros que herdamos da nossa família, quando alguém consegue a façanha de conseguir um amuleto dos Jinni, ele fica inútil sem um hospedeiro. E quando ele consegue algum, nada mais pode impedir o contato. — disse baixinho. — Esse humano foi escolhido. E não foi à toa. 
 
Antony: — Como ele está respirando?
 
Victor: — Magia. Troca de licor. Lembra da taverna irlandesa que fomos no verão passado? “O vinho velho é expulso da adega para alimentar o povo novo. O vinho novo adentra a adega e se torna o vinho velho do futuro”. É o ciclo de purificação. 
 
Todos ficaram em silêncio outra vez. Até que Guilherme se aproximou.
 
Guilherme: — Diogo! Está bem?
 
Diogo: — CLARO QUE NÃO, CARALHO!!!
 
Marcus: — Por que você veio aqui de novo, Diogo?! Eu te avisei que essa coisa era perigosa!
 
Diogo: — Eu não sei, eu... quando eu vi, eu já estava aqui e... aquelas vozes na minha cabeça... 
 
Victor: — Ele não veio porque quis. Ele foi atraído. — Afirmou o irmão de Antony, um dos Pierre.
 
Marcus: — Atraído? Como assim? Essa coisa agora fala?! — O loirinho deu um passo à frente, ficando ao lado do irmão mais velho.
 
Victor: — Não sei bem, mas sei que o amuleto dos Jinni é um Angelicallis. E todos os artefatos Angelicallis precisam da energia eletromagnética do ser angelical para quem foram criados. Sem seus mestres, precisam de um novo hospedeiro. 
 
Eu: — Angelicallis?! Ninguém nunca nos falou sobre isso! – ele deu de ombros.
 
Antony: — Jinni são anjos caídos. O bracelete é um artefato somente da raça deles, vindo de uma classe alta de criaturas associadas a anjos pela renomada bondade. Mas Jinni se tornaram perversos, egoístas e gananciosos. Passaram a prezar-se apenas aos próprios prazeres, então passaram a ser associados a anjos caídos. – tio Marcus e ele se aproximaram e levantaram o braço do Diogo, tocando diretamente o bracelete enorme, dourado, com desenhos prateados, extremamente polido e altamente reflexivo. Parecia novinho em folha. 
 
Marcus: — Eu estudei sobre ele, e em meus experimentos percebi que ele se alimenta de energia eletromagnética. Diogo é um vórtice energético. Ele é uma bomba de energia eletromagnética. O bracelete deve tê-lo atraído de forma intencional, querendo se alimentar da energia dele, e teve uma boa prova quando o "mordeu" naquele dia. 
 
Eu: — Mas por que hoje? Por que ele não atraiu o Diogo antes? Ou outro dia qualquer?
 
Marcus: — Porque hoje é o dia em que o Diogo está mais vulnerável.
 
Guilherme: — Porque é o aniversário de dezoito anos?
 
Marcus: — Não. Porque ele abaixou a guarda, ficou fraco emocionalmente, e a energia do bracelete se aproveitou da fraqueza emocional momentânea dele. Agora temos outro problema. 
 
Diogo: — C-como eu... como eu tiro isso de mim?
 
Antony: — É simples. Não tira. 
 
Todos nós ficamos em puro silêncio. Olhando de um para o outro  esperando que alguém manifestasse uma mísera ideia útil. Mas nada. Ninguém disse nada. Absolutamente nada!
 
Eu: — O que as vozes te disseram, Diogo?
 
Diogo: — Eu... não sei direito, mas... É como se pessoas estivessem cochichando nos meus ouvidos, vozes que vinham junto com uma brisa quente. Disseram que podiam fazer com que me notassem...
 
Guilherme: — Fazer com que quem te notasse? — Ele apenas encarou diretamente o Gui, com a boca entreaberta. Guilherme engoliu em seco. — E você acreditou? 
 
Diogo: — Eu... eu... eu não... eu não consegui resistir, eu precisava... pelo menos essa coisa me fez pensar que eu preciso... – ele chacoalhou o braço direito.
 
Marcus: — Deve haver alguma forma de tirar isso de você. – ele pegou o braço direito do Diogo e examinou o bracelete já instalado em seu antebraço inteiro, como uma parte de uma armadura bem polida. 
 
Marcus apertou o bracelete, e bateu a pinça contra ele, mas quando fez isso, Diogo deu um grito de dor.
 
Diogo: — Eu consigo sentir isso! – tio Marcus parou de bater no bracelete. — Consigo sentir... cada toque.
 
Antony: — Incrível. Ele se uniu ao corpo desse garoto. É como se...
 
Marcus: — Se dividissem os vasos sanguíneos e os nervos. 
 
Diogo: — Isso é ruim?
 
Marcus: — Muito. Não podemos tirar isso de você. — Antony e ele se puseram de pé. Guilherme e eu nos afastamos, deixando Diogo sentado. — Está biologicamente unido a você. Só se você quiser que eu ampute seu braço. 
 
Diogo: — Não! Eu amo meu braço! Como é que eu vou... ah, deixa pra lá.
 
Guilherme e eu ajudamos Diogo a se pôr de pé. Por mais que Marcus quisesse dar broncas no Diogo, ou amputar o braço dele, não podíamos culpá-lo. Ele está fraco emocionalmente, e seria atingido de alguma forma. Se não fosse pelo bracelete, seria por espíritos, ou por outras criaturas. Pelo que já estudei com o tio Marcus, há criaturas, demônios, que se alimentam dos corpos frágeis. Diogo estava se tornando um alvo fácil demais. Ele estava decepcionado, chateado, porque sempre é esquecido pelos pais. Não recebeu os parabéns, e pelo que eu soube não foi a primeira, nem a segunda, e nem a terceira vez que isso acontece. Ele esperou a vida toda ser notado e amado por aqueles que ele ama, e a cada dia está se decepcionando ainda mais. É como... é como um vampiro agarrado nas costas dele, tirando toda a força que ele tem. Um obsessor. E o pior é que não é algo que eu possa resolver. Como o professor Marcelo disse, apenas ele vai poder quebrar a própria maldição. O único trabalho que posso realizar é abrir os olhos dele. E eu preciso fazer isso.
 
Eu: — Tio, preciso falar com ele. Pode nos deixar sozinhos?
 
Marcus: — Não. 
 
Ele me ignorou completamente. Foi curto e grosso. Respirei fundo e percebi que eu teria que ser mais sério, até ele prestar atenção em mim.
 
Eu: — Você não entendeu. Eu realmente preciso conversar com ele. Agora! – cruzei os braços e ele parou de andar pra lá e pra cá no laboratório. Me encarou de uma forma fria... O que me fez hesitar um pouco.
 
Marcus: — Você acabou de me desafiar ou é apenas impressão? – ele inflou o peito. Aquela pose masculina cetoriana, tentando parecer ameaçador. É uma pena que tentar me assustar usando o porte, sempre me deixa ainda mais irritado.
 
Eu: — Foi o que você ouviu, Lycator. O assunto é sério, e é a vida do Diogo. Eu preciso falar com ele, e é importante.
 
Marcus: — Não é hora pra heroísmo, Luka. Já vimos o que os Jinni são capazes, e olha que eles nos mostraram nem uma pequena porcentagem do que podem fazer. Esse bracelete é perigoso, e não pense que vou te deixar sozinho com ele. É pra sua própria proteção.  — ele retornou a caminhar pra lá e pra cá, mexendo nos painéis com Otávio e Luigi, enquanto Carlim analisava o braço do Diogo. Guilherme tentava fazer com que ele se mantivesse calmo, e ambos estavam sentados numa cama alta, apenas conversando. Diogo tirou a jaqueta encharcada de sangue e reclamava por sentir vontade de vomitar.
 
Eu: — Eu não pedi por proteção. Então não começa com esse negócio de que é “coisa de adulto”. Eu só quero que todo mundo saia. 
 
Carlim: — Luka, respeito. – disse sem desviar os olhos do braço do Diogo. Cruzei os braços, e sem querer rosnei baixinho.
 
Eu: — Não estamos em Cetos! Parem vocês dois de tentar controlar tudo, pelo amor de Deus! Parece que sempre que algo de errado acontece, vocês vem com esse assunto de “queremos proteger vocês”! Mas vocês só querem colocar a porra toda no controle de vocês de novo! 
 
Sílvia: — Luka, Já chega...
 
Eu: — O que aconteceu hoje é uma prova de que nada está sob controle. Só porque são reis e rainhas, não quer dizer que todos vão se curvar a vocês.
 
Carlim: — Luka, para!
 
Eu: — E você abaixa a tua bola, Carlim, porque acabou de chegar e já acha que pode mandar em alguém! – apontei pra ela.
 
É, eu já estou irritado mesmo. Não estou mais conseguindo aturar tudo isso. Não é apenas eu que estou sendo atingido por essas coisas. Agora meus amigos estão sendo atingidos. Agora mais do que nunca eu quero participar das coisas, e esse papo de “proteção” aos “mais novos” não vai colar mais! 
 
Marcus: — Luka...
 
Eu: — Não! Você nem ao menos sabe o que está acontecendo. Para de fingir que entende! – sem ao menos querer aumentar tanto o tom de voz, eu acabei gritando, soando agressivo e grosseiro.
 
Senti meu corpo esquentar e... Agora não era um calor normal. Era mais do que eu me lembro de já ter sentido. A taquicardia veio, e não me lembro de ter esse sintoma antes, com minhas habilidades quase explodindo. O calor começou de baixo, dos pés, disparou a subir rapidamente até eu sentir como se fogo fosse sair pelo meu nariz e pelos meus ouvidos. 
 
E escutei... TEC... Um estalo fraco na minha cabeça. 
 
Otávio: — Ele tem razão. Vocês são controladores. Isso é inconveniente, grosseiro, ridículo, e sem falar que é muito chato. – ele passou em frente aos outros e se escorou na porta de saída do laboratório, que ainda permanecia aberta. 
 
Carlim: — Ei, garoto! Você não pode dar opinião aqui. Não é da sua conta.
 
Otávio: — E você é mandona, metida e sem noção de espaço privado. 
 
Nath: — Querem calar a boca todo mundo?! Não é hora de discussão em massa!
 
Ynatta: — Otávio, não se meta.
 
Otávio: — Você não manda em mim. E aliás, eu achei que seria uma família da “realeza” diferente das que já conhecemos. Mas dá pra ver que são os mesmos problemas, apenas de planetas diferentes. Meu pai tem razão. O defeito é universal.
 
Ai, eu nunca concordei tanto com outra pessoa na minha vida. 
 
Minha cabeça estava latejando. Eu sentia meu coração bater até mesmo na minha língua. Eu não estava me sentindo bem, e acho que ninguém notou. Me apoiei na mesa mais próxima e respirei fundo.
 
Otávio: — Vocês estão colocando uma pressão imensurável nas costas dos herdeiros que vocês querem que assumam o amado trono. Tentar proteger de tudo não é a saída pra lugar algum, isso apenas vai manter todo mundo preso no mesmo lugar. Luka não é uma criança para ser controlado e protegido. Nathalie não é uma boneca de porcelana para ser tratada como uma. Guilherme não é um anjinho inocente. Vocês estão todos equivocados, arrumando uma desculpa para que vocês mesmos se sintam seguros. É isso o que eu chamo de hipocrisia.
 
Kenny: — Eu acho melhor a gente...
 
Otávio: — É. Eu vou embora. Já me encheram a paciência por hoje. É por isso que eu gosto mais de máquinas. – com um sorriso de canto, ele se virou e saiu do laboratório. Kenny e Brent foram atrás. — E não se preocupem. Eu sei a saída.
 
Marcus iria dizer algo, mas respirou fundo e soltou o ar, fechando os olhos com força em seguida.
 
Eu: — Saiam... – consegui dizer, mesmo me sentindo fraco, e só conseguindo escutar as batidas do meu coração.
 
Todos estavam em silêncio. Não consegui olhar para eles. Meu olhar estava fixo no chão. Engoli em seco e senti algo familiar. Minha energia estava se elevando, da mesma forma que se elevou quando lancei minhas primeiras chamas.
 
Marcus: — Luka, me...
 
Eu: — Agora! 
 
Não consegui me controlar. Olhei nos olhos dele e senti minhas mãos esfriarem. Senti que cada pelinho dos meus braços, pernas e nuca se ergueram, como se estivessem saudando algo. Jarras de vidro, copos, ampolas, vidros de teste, e muitas das coisas que estavam ali pelo laboratório deram impulsos para lados aleatórios e voaram pelo ar. No momento eu só continuei me apoiando, e meu coração falhou uma batida. Só percebi que estava prendendo a respiração quando fiquei ofegante, faminto por oxigênio. Todos se assustaram quando as coisas voaram, e nem mesmo eu entendi, mas funcionou. Saulo, Ynatta, Antony e seus irmãos, saíram rapidamente do laboratório e correram para a porta. Marcus se abaixou, desviando das coisas pontudas e afiadas. Minha mãe se agachou e Carlim continuou de pé, apenas desviando. Nathalie correu para perto do Guilherme e do Diogo, que estavam distantes demais do evento, e nada se aproximou deles. Coloquei ambas as mãos na cabeça e fiz uma careta de dor, ao sentir todo meu cérebro arder e latejar. 
 
Marcus: — Luka... – ele tentou se aproximar, e tocou minha cintura, mas a dor ficou pior. Estava horrível! Abri a boca, movendo um pouco meu maxilar, pra ver se a dor passava, mas minha cabeça parecia uma bomba relógio.
 
Abri os olhos, e ao olhar para Marcus à minha frente, ele foi empurrado para trás. Vi o reflexo azul pela pele dos meus braços e percebi que olhos estavam brilhando de novo. Não sei o que está acontecendo, mas parece que me irritei a ponto de explodir!
 
A blusa escura do Marcus foi rasgada, como se ele tivesse levado um empurrão por algo afiado e invisível. Vi seu peito direito nu e fechei os olhos novamente.
 
Marcus: — Eu não vou sair! Para com isso, Luka!
 
Não dava pra parar! Não era eu controlando aquilo... ou era? Tentei manter a calma. Respirei fundo, e tentei controlar minha respiração ofegante. Me apoiei na mesa mais próxima de novo e soltei todo o ar dos meus pulmões. Senti tudo se acalmar lentamente. Minha cabeça parou de latejar. Minhas mãos não estavam mais tão quentes, e nem suavam tanto. Meu corpo voltou ao normal. Abri os olhos e olhei para todos ali dentro. Eles me olhavam assustados. Por mais normal que tudo aquilo devesse parecer para eles, apesar de tudo o que já fizemos, naqueles olhares eu vi que era a primeira vez que eles viram. Notei a bagunça que fiz.
 
Mas eu... eu nem tenho essa habilidade. Só a Nathalie e... ah, não... então é isso. Mover as coisas com energia psíquica. Isso é algo dos cetorianos, algo que todos têm. Parece que chegou a minha vez. 
 
Eu: — Eu quero ficar sozinho com o Diogo. Quero ninguém aqui dentro. Saiam, e não vou pedir de novo.
 
Carlim: — E vai...
 
Marcus: — Tudo bem. – ele a interrompeu propositalmente, erguendo a palma esquerda em sua direção, como sinal para se calar. — Qualquer coisa, você pode gri...
 
Eu: — Qualquer coisa, eu me viro. Pode deixar. – o interrompi também.
 
Marcus, Minha mãe e Carlim saíram. Com um pouco de dificuldade, me movi até onde Diogo, Guilherme e Nathalie estavam e me sentei na cama também. Respirei fundo. Esbarrei em algumas coisas e me sentia fraco. Parece que usar aquele tipo de habilidade me desgastou mais que o normal.
 
Eu: — Nath, Guilherme... por favor, me deixem sozinho com ele. – levantei minhas mãos e percebi que ambas tremiam. Minhas pernas estavam fraquejando. Tentei manter a calma e focar em pelo menos ficar acordado.
 
Nath: — Você sabe o que fez, né? – olhei pra ela. — Você desafiou não só meu pai, mas a sua mãe e a sua irmã. 
 
Eu: — Estou cansado de ser controlado, Nathalie. Sabe o que seu irmão me contou? Nós somos intolerantes à lactose.
 
Nath: — E você surtou por causa disso?
 
Eu: — Claro que não! Não sou idiota. Eu tô puto porque eu só soube dessa fraqueza quando seu irmão chegou, e me explicou com uma naturalidade impressionante. Coisa que nem minha mãe, nem seu pai e absolutamente ninguém fez. Eles continuam escondendo coisas de nós. E por mais que nós tentemos fazer com que eles contem tudo, eles continuam mentindo e escondendo.
 
Guilherme: — Talvez eles só queiram nos proteger.
 
Eu: — É, estão nos protegendo bastante, nos deixando ser envenenados todos os dias. Eu não quero ser protegido! Eu quero me virar. Estou aprendendo a me virar.
 
Nath: — Mas, Luka... você acha que... meu pai ainda esconde coisas sobre nós?
 
Eu: — Eu tenho certeza. Eles mudam de assunto, não respondem todas as perguntas que fazemos, ou quando respondem, explicam pela metade. Eu sinto como se minha parte astriana fosse um mistério! Toda vez que eu pergunto algo pra minha mãe, ela hesita em dizer. Toda vez que o Cássio tem suas curiosidades e perguntas, eles hesitam em responder.
 
Guilherme: — Eles estão com medo da nossa reação. Não é nada demais, você exagerou, Luka. – afirmou ele na maior naturalidade, como se estivesse rejeitando tudo o que eu estivesse tentando dizer, principalmente sobre a mãe dele. 
 
Eu: — Cale a sua boca. Isso não é motivo, idiota. Depois de tudo o que já descobrimos, o que vir adiante não vai mais nos assustar.
 
Nath: — Ou vai.
 
Eu: — E é por isso que eles devem nos contar tudo, porque se eu descobrir sozinho, eles vão se arrepender. E eu não estou brincando. — falei no tom mais sério possível, enquanto encarava o chão. 
 
Diogo: — Me desculpa... – nós três o olhamos.
 
Eu: — Pelo quê?
 
Diogo: — Você brigou com sua família por minha causa. Perdão por ter causado tudo isso, eu só causo problemas mesmo... foi mal. – ele ficou repentinamente cabisbaixo. Não sentia mais a energia dele. Eu estava fraco demais para analisá-lo, mas com toda certeza ele estava abaixando a guarda de novo.
 
Eu: — Isso não tem a ver com você, Diogo. Você não teve culpa. Tudo o que eu falei são coisas que já estou prendendo há meses. Não é só de hoje que eles escondem coisas. Se Nathalie, Guilherme e eu não tivéssemos descoberto nossas habilidades por conta própria, eles só nos contariam quando atingíssemos trinta anos. É nosso direito saber quem somos, o que somos e de onde viemos. Eles não podem nos privar de tudo isso, e ainda continuar escondendo as coisas.
 
Nath: — Você tem razão. Por mais ruim que seja admitir que meus pais estão escondendo coisas, é a realidade. Eu sei nada sobre Ástria, e toda vez que minha mãe deixa algo escapar, meu pai interrompe ela e eles mudam de assunto. 
 
Guilherme: — Minha mãe já me falou de Ástria algumas vezes. Falou sobre eventos que tinham na cidade e...
 
Eu: — Ah, que bom, Guilherme. Está falando das ruas inundadas por flores? Eventos onde todo tipo de gente ia? Que bom, minha mãe também me falou disso, e com certeza a mãe da Nathalie também já falou sobre isso. Só que não é disso que a gente tá falando. Tudo o que elas falaram foi bem mecânico.
 
Nath: — Pensando por esse lado, nós três precisamos concordar. Tudo o que dizem, é como se fossem autorizadas a dizer. Mas quando a gente faz mais perguntas, elas enrolam. – Guilherme riu.
 
Guilherme: — Vocês estão meio paranoicos.
 
Eu: — É verdade. E estamos certos em ficar. Passamos dezesseis anos sem ter a mínima ideia de quem somos, e a cada semana eu descubro coisas novas que ninguém me contou, e tô achando que é paranoia minha eles ainda esconderem coisas. Você só quer acreditar que sua mãe é perfeita porque no momento você só tem ela. Se você não quer pelo menos desconfiar, então fica na tua, porque eu vou fazer o que for preciso pra descobrir o máximo sobre mim que eu puder.
 
Nath: — Eu tô contigo. Chega de esconder as coisas.
 
Guilherme: — Por que está falando comigo assim, Luka? – com os braços cruzados, ele se pôs à minha frente. 
 
Eu: — Porque você ainda é um otário. – ele arregalou os olhos, surpreso com o que eu afirmei. — E medroso acima de tudo. Não adianta falar com você, você não aceita sugestões de nada. É teimoso, e não importa quantas vezes eu repita. Você não vai fazer esforço algum pra entender.
 
Guilherme: — V-você me... me chamou de...
 
Eu: — Otário. É, eu chamei. Sabe, eu conversei com algumas pessoas experientes. Elas me abriram os olhos. Uma coisa que eu preciso parar, é de colocar minhas expectativas em quem não me acompanha, e não estou falando no sentido de andar pra todo lado comigo. Você está se tornando aqueles príncipes das histórias medievais. Aceita tudo o que sua família coloca pra cima de você, e vai continuar sendo um servo da realeza, e quando se tornar rei, não vai ter pulso firme porque dependia das decisões dos seus pais.
 
Nath: — Ai, pegou pesado, Luka. Mas foda-se, eu gostei e concordo. Achei que só eu tinha percebido. Apesar de tudo, nós ainda temos consciência própria sobre as decisões que precisamos tomar, nos rebelando contra ordens, assim como Luka fez agora. Já tu, Guilherme, entendeu errado tudo o que tentamos te ensinar desde que nos conhecemos. Queríamos que você aprendesse a respeitar as pessoas e as conquistas. Não que se tornasse o Poodle das pessoas.
 
Guilherme riu, e iria retrucar, mas Nathalie mesmo o interrompeu.
 
Nath: — E não adianta dizer que Luka está errado. Você está sendo um príncipe mixuruca mesmo. Seu ego não vai te levar tão longe, não, macho. Não é porque você é gostoso e tem um pirocão que o mundo vai se curvar pra você assim. Se suas únicas qualidades são essas, você está perdendo imagem. Sua mãe está escondendo coisas de você, e você não pode negar. Eu mesmo nem sabia que leite podia me matar. Você sabia? — ele ficou em silêncio.
 
Eu: — E se a gente amadurecer e não suportar mais lactose como suportamos agora? Thay disse que depois da maioridade universal, vai se tornar um veneno pra gente.
 
Nath: — Nós iríamos continuar nos matando aos poucos? Isso que “proteger” quer dizer? – ela riu. — Essa concepção de proteção tá meio equivocada. Se quiserem me proteger mesmo, deveriam nos contar nossas fraquezas antes que a gente faça a merda de nos matar sem querer. 
 
Guilherme: — Eu não vou ficar contra minha mãe. Ela é a única família que eu tenho! E se vocês quiserem arrumar problema com os pais de vocês, que fiquem sozinhos nessa. Eu tô fora.
 
Eu: — Ótimo. 
 
Nath: — Eu tô dentro. Vai ser perigoso e difícil armar contra nossa própria família, mas eu aceito o desafio. – ela se afastou de nós. — Depois a gente conversa. Também preciso mostrar minha indignação com o povo lá fora, talvez mandar eles tomarem no cuzão. Bora, Guilherme.
 
Guilherme: — Eu não vou sair. – ela deu de ombros e saiu sozinha.
 
Eu: — Eu preciso conversar com o Diogo, e é particular.
 
Guilherme: — Não há segredos entre o Diogo e eu.
 
Arqueei as sobrancelhas e dei o sorriso mais debochado que eu consegui dar, olhando profundamente naqueles olhos.
 
Eu: — Ah, é mesmo? – ele engoliu em seco. 
 
Mas eu duvido muito que não haja algum segredo entre eles. Diogo parecia tranquilo em relação a isso. Ele não parece o tipo de cara que guarda segredos. E se ele tiver, ele sem querer já jogou na roda de papo sem nem perceber, de tanto que ele fala. Já Guilherme não. Ele também guarda as coisas só pra ele, e dava pra ver naquela cara.
 
Diogo: — Por que essa cara, mano? – ele riu. — Eu não te escondo nada. Na verdade, eu nem tenho mais segredos. Acho que vocês já sabem tudo sobre mim.
 
Eu: — É, você é um livro aberto. Pena que o Guilherme grampeou as últimas páginas dele. – cruzei os braços e Diogo desfez o sorriso.
 
Meu estoque de paciência estava nulo. Não sentia mais o gosto das minhas palavras presas, não sentia mais o incômodo da minha garganta travando para não dizer certas coisas. Não estava nem me importando se eu iria machucar os sentimentozinhos de alguém. Já me machucaram demais até aqui, seja mentindo, seja usando palavras cortantes, seja escondendo, ou seja traindo minha confiança.
 
Eu: — Ô Diogo, você sabia que a ideia de você ser tirado da sua família, e adotado pelo Tarthon, foi ideia do Guilherme?
 
Diogo: — Ah... Como é??? – ele franziu as sobrancelhas.
 
Eu: — A ideia principal não veio do pai dele. E mesmo depois da morte do Tarthon, Guilherme insistiu para que a mãe dele continuasse com o processo. Mesmo você dizendo que não queria.
 
Diogo: — Mas... isso é verdade Guilherme? Você me disse que... — agora a expressão do Diogo mudou. Seus olhos estavam estreitos e acusatórios. Olhei pro Guilherme e vi seu rosto ficar corado, e não de vergonha. Ele estava nervoso, e a primeira coçada atrás da nuca já o entregou. — Por que não me contou isso?!
 
Guilherme: — Eu só... só queria que você parasse de sofrer pela sua família! Toda semana você aparecia com um hematoma novo, com cortes, e... cada dia pior. Eu queria te tirar daquele lugar.
 
Diogo: — Mesmo eu implorando pra que seu pai não me tirasse dos meus pais?
 
Guilherme: — ...
 
Diogo: — Foi uma decisão minha! Não é direito seu e nem da sua família vir até minha casa pra me tirar dos meus pais! Eu quero ficar com eles, e eu pedi para que parassem de tentar! 
 
Guilherme: — Eu sei, mas...
 
Diogo: — Por favor. Saia. – Guilherme suspirou e olhou pra mim. Dei de ombros e ele engoliu em seco. Ele viu que eu não estava blefando, e nem brincando. Nem todos os segredos dele que eu sei, foi ele quem me contou. Algumas coisas eu aprendi a perceber pela forma que ele conta os eventos. Alguns nem eu mesmo sei como eu sei, mas eu sei. 
 
Guilherme: — T-tem certeza?
 
Diogo: — Agora eu é que quero ficar sozinho com o Luka. 
 
Guilherme assentiu e se virou de costas, saindo como um cãozinho com o rabo entre as pernas. 
 
Diogo: — Ainda não estamos na lua cheia. O que houve? – eu ri.
 
Eu: — Não é efeito da lua cheia. Eu só tô um pouco... exausto. Eu tô sem energia, e ainda cansado, fico insuportável.
 
Diogo: — É, deu pra perceber. Não vai me esculachar também, né? – neguei com a cabeça e sorri pra ele. — Ah, que bom. 
 
Eu: — Na verdade, eu nem tenho o que reclamar de você. Sempre correspondeu às minhas expectativas, e sempre foi um amigo esforçado. Devia se orgulhar por eu não ter o que dizer sobre você agora.
 
Diogo: — É, eu gosto de ser sincero no que sinto e no que faço. – ele olhou nos meus olhos. — E eu também gosto quando você bota ordem na porra toda. Aí sim eu acredito que você veio da realeza. – nós rimos outra vez.
 
Eu: — Parece que eu puxei o pavio curto dos dois lados da família. Mas enfim. Você sabe sobre o que a gente precisa conversar, não é? – ele desfez o sorriso e coçou o queixo.
 
Diogo: — É, eu tenho uma ideia. – ele olhou para o bracelete em seu antebraço direito e respirou fundo. — Foi mal, mas não vou abrir mão da minha família.
 
Eu: — Você não está falando com o Guilherme, Diogo. – toquei o ombro esquerdo dele e me aconcheguei na beira da cama, me aproximando dele. 
 
Diogo: — C-como assim? – ele me olhou outra vez  profundamente nos olhos, tentando descobrir o que eu pensava.
 
Eu: — Não vou pedir para que se afaste da sua família. Pelo contrário. Se faça presente. Eles te machucam? Mostre pra eles suas feridas. Mostre que está cansado. Ao invés de cuidar das dores deles, cuide das suas. Não vou ser egoísta e pedir pra que você se afaste deles, porque eu sei que você também tem seus sentimentos. Vou entender o seu lado. 
 
Diogo: — Você quer que... eu me entenda com meus pais?
 
Eu: — Se esse for o seu desejo, claro que sim. Mas saiba sobre os perigos que você corre. Pode se magoar ainda mais. Você vai ter que saber a hora de continuar, ou de desistir. Tente mais um pouco, mas não chegue ao seu limite. Quem importa aqui é você. Você é um homem incrível. Me arrisco a dizer até que superou o Guilherme e todos os garotos da minha família. Você tem um coração bom pra caralho! – ele sorriu apenas com os lábios, sem mostrar os dentes. — Mas se seus pais não conseguem ver isso, a culpa não é sua. Não fique se jogando na frente deles. Faça o que te faz sentir bem. Se possível, mostre a eles que você ainda se importa. 
 
Diogo olhou pra frente, e em seguida encarou friamente o chão. Aquele sorriso contido que o vi dar, agora estava oculto. Todos temos uma fraqueza, e a do Diogo são os pais. Apesar de terem feito tanto mal a ele, ele ainda se arrisca para encantá-los.
 
Diogo: — Falando assim, parece até fácil.
 
Eu: — Você que complica tudo. O que você fez pra que eu me tornasse seu amigo?
 
Diogo: — Quase nada. O maior esforço veio de você mesmo. 
 
Eu: — Exatamente. Mas você também quis se aproximar, e se esforçou pra isso. O esforco veio dos dois lados. Então como você quer se aproximar de alguém, ser reconhecido por quem você ama, ser amado também, ser notado, se... se o esforço vem só de você? Você não se cansa? Todos os dias lutando pra conseguir a atenção, todos os dias apartando brigas dos seus pais, se machucando pra não ter sua casa transformada num campo de guerra... você não cansa? Sempre tentando apaziguar o ambiente, deixar tudo num clima bom, para que depois você seja tratado como um bichinho de zoológico maltratado, e não como filho? Você não tá cansado?
 
Diogo: — Eu... – ele riu, mas um riso diferente. Consegui sentir o retorcer naquela risada. Foi uma agonia ouvir aquela risada dolorosa. Ele estava se remoendo, senti o peito dele doer, se é que isso é possível. Só não esperava que eu atingisse a ferida mais profunda dele. Ao se virar pra mim outra vez, seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Eu tô muito cansado, cara...
 
A primeira lágrima escorreu de seu olho esquerdo. Ele rapidamente a limpou, aparentemente tentando esconder que estava frágil. Quando a lágrima caiu do olho direito, e ele fez a menção de limpar, segurei seu pulso e abaixei sua mão.
 
Eu: — Deixe elas caírem. Não é fragilidade. É força. Se permita chorar pelo menos uma vez na vida. Seus pais não estão aqui. Eu sei que você já chorou muito mais que isso. 
 
Diogo: — Quando... quando eu era pequeno... – baixei minha guarda também, não querendo parecer superior a ele. Eu queria que ele me atingisse na mesma intensidade, me olhasse e visse que eu estava tão “frágil” como ele se sentia. — Eu estava olhando o retrato de quando meus pais ainda eram jovens. E eu... eu deixei cair depois que me assustei com o grito da minha mãe. Depois daquele dia, eu ganhei uma cicatriz nas costas. Meu pai me bateu com um galho de pitangueira, por eu ser um “moleque enxerido”, e por mexer onde meu nariz não era chamado. Mas eu só... Estava curioso com a história daquela foto. Como eles se conheceram.... eu nunca soube a história deles.
 
Eu: — Você já perguntou? – ele discordou. — E por que não?
 
Diogo: — Da última vez que perguntei sobre alguma coisa, me ignoraram, como se eu não existisse. Desde então eu nunca perguntei mais nada. Dava meu jeito de saber das coisas.
 
Eu: — Apesar de ingênuo, você é esperto. Não devia se cobrar tanto quanto faz. 
 
Diogo: — É que... eu quero ser como o Guilherme, como você, como a Nathalie... eu sempre fui muito retardado, lerdo pra caramba, e só me cobro porque eu sei que preciso ser mais do que eu sou. – eu tive que rir. 
 
Eu: — Não, você não precisa. Se for pra melhorar, melhore por você mesmo. Não pra ficar par a par com alguém. Não se torne um Guilherme. Nem um Luka. Vire uma melhor versão de você mesmo, seja da forma que você QUER ser, e não da forma que os outros desejam que você seja. E isso inclui o Guilherme. Vocês são melhores amigos, e eu sei que você altera sua forma de ser por medo de perdê-lo. Afinal, Guilherme foi seu refúgio todas as vezes que você precisou fugir de casa, não é? – ele assentiu. — Não é errado você discordar dele. Você nunca quis ser o idiota amigo do idiota que o Guilherme foi. 
 
Diogo: — Eu odiava tratar as pessoas daquela forma. – disse baixinho.
 
Eu: — E eu sei disso. Você não é um boneco de seda, não é frágil como um, não é inconsciente como um. Você sabe o que você sente. E você sabe que um dia você vai ter que mudar tudo isso. Não sou eu que vou fazer algo por você, e não espere que alguém faça. O maior pecado, o maior erro que você pode cometer, é esperar que as outras pessoas se importem com você. Se você quer a mudança, faça você mesmo. Só você pode desfazer a maldição que atormenta você. Está me entendendo?
 
Diogo: — Eu não queria, mas... – escutei-o soluçar duas vezes seguidas. Respirei fundo antes de continuar. Agora que vem a parte mais difícil.
 
Eu: — Eu odeio tudo isso. Eu odeio ter todas essas habilidades e ser colocado em perigo a todo momento. Eu odeio que minha família tente me controlar. Eu odeio ter que desobedecer e agir da forma que agi hoje só porque eu estou cansado. Eu odeio ter que MOSTRAR que eu estou cansado! Você não odeia?
 
Diogo: — Eu odeio ter que levantar todos os dias antes que meus pais acordem, porque tenho medo do olhar deles. Eu odeio ser amigo de um monte de gente foda, e eu não corresponder na mesma intensidade. Eu odeio ter essas crises ansiosas na frente dos outros e me sentir fraco, podendo ser pisado a qualquer momento. Eu odeio ter que chorar escondido pra não ser alvo de pena dos outros. Eu odeio querer e pensar todos os dias em enfiar uma faca na minha própria garganta e desejar desaparecer a cada... dia... da... minha... vida! Eu simplesmente odeio amar meus amigos e por eles eu não acabar de vez com essa porra que tô sentindo... e... Eu odeio ver vocês odiando seus poderes, quando eu queria ter pelo menos um pra me proteger... pra não ser machucado mais. Ah, quem me dera se eu tivesse a pele impenetrável há uns seis anos atrás. Eu tentaria mais... e eu não desistiria tão fácil.
 
Eu: — E se você tivesse a pele impenetrável? Realmente tentaria mais? Tem certeza disso? – ele ficou calado.
 
Diogo: — Na verdade... não.
 
Foi a conversa mais difícil que eu já tive na vida. Diogo de repente desabou. Não eram lágrimas que caíam de seus olhos. Eram cachoeiras, expandindo cada vez mais seu território molhado. Ele se curvou para frente segurando o abdômen, como se estivesse sentindo dor ao chorar.
 
Eu: — Doxja, tem como desligar o som dessa sala, por favor? – nem sabia se tinha aquele recurso no sistema, mas tentei. Não quero que escutem lá fora.
 
Doxja: — Sim, Príncipe Luka. Deseja ativar a barreira acústica do laboratório? Caso sim, o som será impedido de sair deste cômodo. – a voz feminina robótica soou de todos os lados.
 
Eu: — Sim, por favor, Doxja.
 
Doxja: — Barreira acústica do laboratório ativada. 
 
Eu: — Pronto, Diogo. Eu não vou ligar se você soltar tudo. Pode gritar, eu sei que você quer gritar. 
 
Diogo: — Eu... eu preciso... tentar consertar minha vida...
 
Eu: — E como você vai fazer isso? 
 
Diogo: — Eu... quero recomeçar. Eu quero... fazer tudo de novo... – respondeu ainda sem conseguir parar de chorar. — Você não sabe, Luka... o quanto eu desejei morrer... só pra saber se meus pais iriam ao meu enterro. Mas... o desgraçado do Guilherme não deixou!!! Ele segurou minhas mãos no dia em que tentei... e não me soltou mais...
 
Deixei ele quieto, chorando em paz por alguns minutos. O abracei de lado e deitei minha cabeça em seu ombro esquerdo. Senti a pressão em seu pulmão e senti que, apesar de parecer que ele estava libertando tudo, ele não estava.
 
Eu: — Grite, Diogo. Grite. Chore bastante, solte o verdadeiro Diogo aí. Solte o que você tem prendido todo esse tempo, desde quando você nasceu. 
 
A intensidade do choro dele aumentou. Ele deu um grito engasgado, não tão alto, e vi que ele estava ficando vermelho. Mas não acabou. Na verdade, nem começou. 
 
Eu: — AAAAAAAAAAAAAHHH!!!!!! 
 
Gritei o mais alto que eu podia, usando toda a potência da minha garganta. Senti minha laringe arder e arranhar, mas não liguei. Também chorei. Eu também tenho prendido as coisas que sinto por muito tempo. Preciso gritar.
 
Eu: — GRITA, DIOGO!!! 
 
E ele o fez. Ele deu um berro tão estridente e doloroso, que senti a cama vibrar. De repente ele já estava chorando alto, e vi que consegui fazê-lo se libertar. O Diogo estava fora do próprio corpo, sem medo, sem receio, e estava nem um pouco frágil. Senti a verdadeira vibração dele.
 
Eu: — Isso aí. Bota pra fora. – toquei as costas dele e a intensidade do choro diminuiu. 
 
Diogo se virou pra mim, com o rosto encharcado pelas lágrimas. Suas bochechas estavam bem vermelhas. Sua pele morena ganhou tons avermelhados. Ele saltou pra cima de mim, me dando um abraço super apertado, mas consegui resistir bem naqueles braços. Sem que ele percebesse, também derramei ali, em seus ombros, as lágrimas que eu prendi. 
 
Diogo: — Obrigado... obrigado por... por tudo... tudo mesmo. 
 
Eu: — De nada. Mas eu é quem preciso agradecer. Obrigado por ter se tornado meu amigo. Quero dizer, obrigado por ter se tornado parte da minha família. – escutei ele dar uma fraca risada entre o choro, e isso me fez sorrir também.
 
Diogo: — Queria que você fosse meu parente. Os meus não valem a bosta que comem. – eu ri baixo, e o apertei naquele abraço também. 
 
Eu: — A família foi feita pra nos confortar, nos fazer sentir bem, nos sentir preciosos. E se não for assim, não é família. Tive uma conversa com o professor Marcelo e ele abriu meus olhos para muitas coisas. Eu não vou dar as costas pra você, pode acreditar. E se precisar de algo, fale comigo. Eu vou ajudar da forma que posso, se estiver ou não ao meu alcance. 
 
Diogo: — Valeu. Você tá sendo o irmão que eu nunca tive. Um irmão mais velho, e o Guilherme mais novo. — ri baixinho. — Obrigado por isso.
 
Eu: — Agora vamos levantar o astral. Arruma esse cabelo, levanta esse sorriso, arruma essa postura... – passei as mãos no cabelo dele, tentando arrumar, pois estava bem desgrenhado. Ele riu e limpou as lágrimas com a blusa, e quando levantou os braços, o bracelete encostou em mim. 
 
Senti o toque quente daquilo. Estava na mesma temperatura que o corpo do Diogo. Uma descarga de energia passou pela minha pele e inundou meu corpo. Na hora, todo aquele cansaço sumiu. Minhas pernas não estavam mais tão fracas, e nem minhas mãos tremiam. Me afastei dele e fiquei de pé. Olhei onde o bracelete me encostou e vi que havia uma mancha roxa ali, como se realmente tivesse me dado uma descarga elétrica, e me queimou. 
 
Diogo: — O que foi?
 
Eu: — O bracelete, ele... repôs minha energia, mas me queimou. – Diogo se levantou e verificou meu braço.
 
Diogo: — Me desculpe.
 
Eu: — Não, não foi sua culpa. Você não sabe controlar ele. Pelo menos ainda.
 
Diogo: — Quer dizer que... eu vou poder controlar essa coisa? 
 
Eu: — Não sei. Se ele se uniu a você, eu acho que agora ele é seu. – eu ri. Ele analisou o bracelete longo e deu de ombros. — Ele podia ter escolhido qualquer um de nós como hospedeiro, mas escolheu você. Sinta-se exclusivo.
 
Diogo: — Caralho, eu recebi um presentão... – nós rimos. 
 
Conversamos mais um pouco. Toquei propositalmente o bracelete outra vez, porém nada aconteceu. Era apenas um metal extremamente reflexivo, que acompanhava a temperatura corporal do Diogo. E quando o Diogo enrijecia os músculos do braço, o metal parecia se mover para se adaptar à expansão muscular. Parecia até pulsar de acordo com as batidas do coração do Diogo, às vezes. Era diferente. 
 
Diogo: — Gui e você não vão ficar brigados, né?
 
Eu: — Não sei. Mas também não estou me importando muito com isso.
 
Diogo: — Como não? Ele gosta de você. Acho até que ele te ama. – sorri e olhei naqueles olhos castanhos escuros.
 
Eu: — Pra eu ter certeza disso, preciso ouvir da boca dele, e não da sua. 
 
Diogo: — Sabe que ele não vai dizer, né? Ele é orgulhoso pra caralho.
 
Eu: — Eu também sou. E eu disse.
 
Diogo: — Nossa, mas já? – eu ri. — E o que ele respondeu?
 
Eu: — Ficou todo desastrado, e só disse que ele também.
 
Diogo: — Ah, que merda. – ri de novo quando ele fez uma careta. — Vê se fala com ele, tá bom? Não deixe ele magoado com as coisas que você disse.
 
Eu: — Vou tentar. Mas ele bem que precisava de um tapa metafórico na cara. – Ele riu e concordou.
 
Diogo: — E como vai ficar a situação com sua família? Eu não quero ver você passar pela mesma coisa que eu passei.
 
Eu: — Não se preocupe. Com eles eu me viro, e ninguém vai me colocar de castigo.
 
Diogo: — Como sabe que não?
 
Eu: — Porque agora eu sei fugir e contra-atacar. – dei de ombros e ele sorriu. Ficou fofo aquele sorriso sendo aberto lentamente, começando com um breve sorriso de canto. 

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