CAPÍTULO 100: Apenas a Ponta do Iceberg.

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[Narrado por Luka]


Ao abrir os olhos, senti apenas toques em minha testa. Eu enxerguei a luz, e coisas claras, mas não imagens inteiras... apenas borrões. Escutei conversas ao meu redor, mas nada parecia me importar muito. Apenas tentei sentar-me no lugar macio onde eu estava e todos ficaram em silêncio.
 
Kenny: — Ah, você está bem! Que bom. — senti seu toque quente em meu ombro. Olhei na direção de onde vinha sua voz, mas não consegui ver seu rosto. Estava tudo muito embaçado.
 
Ynatta: — Você venceu a briga com o Djinn, parabéns. Está bem?
 
Eu: — Ah... — ao tentar falar, minha garganta ardeu. Senti minha língua pegajosa e minha saliva com gosto ferroso.
 
Ynatta: — Quantos dedos tem aqui? — não vi nada. Apenas escutei o chacoalhar de seus movimentos cortando o ar.
 
Eu: — Pelo som, dois cortes no ar, mas... eu não sei... não enxergo...
 
Ynatta: — Audição perfeita. Mas... qual a cor do curativo que Kenny fez no seu tornozelo? — tentei olhar, mas nem vi meu tornozelo. Levei minha mão até lá e arranquei o curativo. Ao aproximar dos meus olhos, pude ver a mancha vermelha do sangue, e roxo ao redor.
 
Eu: — É... roxo?
 
Ynatta: — Cicatrização ótima também. Mas sua visão foi prejudicada. Kenny, vamos levá-lo pra cabana.
 
Achei que alguém iria me pegar no colo e me levar, mas apenas me apoiei nos ombros dos dois e eles me guiaram. Eu me sentia bem cansado... queria que alguém me levasse no colo.
 
Chegamos na cabana e... logo reconheci um odor. Joaquim estava lá, mas pelo som de sua respiração, ele estava dormindo. Pela dificuldade de usar o sentido da visão, parece que meus outros sentidos aumentaram de intensidade. Pude escutar as vozes dos outros alunos bem longe de nós, provavelmente no refeitório ou no anfiteatro com o Marcelo. Estava armando pra chover, Ynatta me disse, mas parece que seja lá o que me ajudou a destruir o Djinn, afastou as nuvens e quebrou o feitiço do Otávio. Fiquei surpreso em saber que Otávio sabe usar magia, além de se teletransportar e ser um mestre da tecnologia. Me pergunto o que mais ele sabe fazer. Ele parece ser mais forte até do que os soldados do meu tio.
 
Eu: — Era pra ter cicatrizado... — senti minha orelha mexer suavemente ao escutar Kenny se mover ao meu lado. Os passos dele eram centenas de vezes mais silenciosos que os passos de Ynatta e do que os de qualquer outra pessoa normal. Ele parecia estar usando pantufas.
 
Kenny: — Você me ouviu? — assenti. — Uau. Eu tenho DNA de felino selvagem. Não são todos que conseguem perceber minha presença em lados específicos. — sentou-se ao meu lado.
 
Eu: — Minha espécie dominante descende de espécies felinas.
 
Kenny: — Huuum... não são de mamacos?
 
Eu: — Nope. Apenas o lado cetoriano. Os astrianos são diferentes.
 
Kenny: — E como duas espécies diferentes tiveram filhos?
 
Eu: — Eu também não sei. Deveria ser impossível. — suspirei... cocei os olhos, mas não melhorava.
 
Ynatta: — Não vai cicatrizar. Não há ferimento nos seus olhos. Deve ser superficial. O que causou isso?
 
Eu: — Depois de eu invocar o deus Thor, ele lutou contra o Djinn... o bracelete deve ter absorvido muito impacto e poder dos raios e das marteladas dele, e então o... o Djinn explodiu em luz e chamas. Não tive tempo de fechar os olhos.
 
Ynatta: — E Thor? Notou algum rastro dele depois da explosão? — neguei com a cabeça. — Nem nós. Se ele estava muito próximo, ou a explosão o matou, ou o feriu bastante.
 
Continuamos ali. Logo senti o cheiro característico do Diogo.
 
Eu: — Diogo tá vindo.
 
Demorou uns minutos pra ele realmente aparecer. Ao entrar, ele respirou fundo. Estava um pouco diferente. Eu posso sentir o calor que ele exala, e ele está sim diferente. Tinha um cheiro a mais nele que não sei de quem é.
 
Diogo: — Ah! Você está bem! Que bom, preciso me preocupar?
 
Eu: — Não, tá tudo bem... exceto que estou cego. — o ar de alívio dele sumiu. Se aproximou.
 
Diogo: — Por Deus... — sentou-se aos meus pés. — O Djinn fez isso com você??? — assenti. — Talvez então eu possa quebrar o...
 
Ynatta: — Não foi feitiço. Os olhos dele foram queimados por Fogo Verdadeiro. É fogo celestial. Ou ele vai ficar cego pra sempre, ou vai se curar sozinho. Perdão a sinceridade.
 
Que bom... estou mais fodido que antes.
 
Ynatta: — Como você escapou inteiro, Diogo? Você foi pego, eu sei.
 
Diogo: — Passei no teste. O bracelete me protegeu da ilusão e escapei de boas. O Djinn fugiu assim que viu isso comigo. — chacoalhou o braço com o relógio no ar.
 
Eu: — E você, Joca? Como escapou? — notei rapidamente que ele já tinha acordado. E ele não tinha nada de diferente. Aposto que a aura da pessoa muda quando ela está sob efeito do poder dos Jinni, e até mesmo a mente muda. Joaquim estava calmo e com a mesma energia. E se o Djinn foi atrás do Diogo, é óbvio que foi atrás do Joca, da Nath e do Gui também. Devem estar tentando nos atingir separadamente.
 
Joaquim: — Aah, boa tarde, povo... — ele bocejou. — Faz um tempinho, um pouco antes de vocês chegarem... ele estava doente. Não era tão forte quanto os outros devem ser. Está para morrer e... me deixou escapar.
 
Ynatta: — Por que não nos avisou que já tinha acordado?
 
Joaquim: — Estava muito cansado. Acabei tirando um cochilo. Foi mal. — bocejou de novo.
 
Ynatta: — Já que vocês três voltaram, verei como os outros estão. Kenny, fique aqui até Miguel voltar.
 
Kenny: — Belê.
 
Ficamos ali conversando até a hora do jantar. Como eu não podia enxergar direito, Carlim levou algo pra eu comer na cama. Agradeci, pelo menos ela está demonstrando algum afeto, e não sendo uma puta ogra. Logo Miguel, Juan, Thomas e Sandra retornaram. Juan, como sempre, se jogou na cama dele e ficou. Thomas, Sandra e Miguel vieram ver como eu estou. Tentei fingir que enxergava tudo, mas... era difícil. Sandra e Thomas não perceberam, mas Miguel sim.
 
Miguel: — Ele está cansado. Vão pras suas camas. Eu vou examiná-lo. — Thomas e Sandra levantaram. Miguel se aproximou de mim e senti seu toque quente no meu rosto. Ele abaixou e levantou minhas pálpebras e parecia estar examinando tudo. — Está tudo bem mesmo?
 
Eu: — Sim... claro...
 
Miguel: — Enquanto eu estiver falando, eu vou levantar alguns dedos e quero que você me diga o número, okay? — assenti. — Já levantei. — droga, não consegui escutar, porque estava atento à voz dele.
 
Eu: — Três... dois... — suspirei.
 
Miguel: — Sente algo diferente? Uma dor de cabeça, dor em algum lugar? Como estão as pernas?
 
Eu: — Bem.
 
Miguel: — Tá, você está com dificuldade no sentido da visão. — sabia. Ele percebeu. — Levantei os dedos algumas vezes na sua frente, entretanto você não percebeu. Me deixe ver. — mais uma vez ele examinou meu olhos, só que bem mais de perto. — Uau...
 
Eu: — O quê?
 
Miguel: — Seus olhos são muito... bonitos... — ri baixo, finalmente quebrando o clima tenso. Mais uma vez Miguel me trazendo boas sensações.
 
Eu: — Se eu pudesse ver os seus assim tão de perto também... diria o mesmo.
 
Miguel: — Olha... você se surpreenderia com minha resposta pra isso. — ri outra vez. — É queimadura superficial. A película protetora dos seus olhos foi parcialmente queimada, atrapalhando a captura de imagens da retina, mas as células mortas serão eliminadas com a lubrificação dos olhos, e uma nova película vai se desenvolver. Isso deve durar pelo menos uns dois dias.
 
Eu: — Vou enxergar tudo embaçado por dois dias?
 
Miguel: — É. Você não corre risco de ficar cego. Deve ter acontecido por causa da sua temperatura ontem. Ou pelo raio que caiu na mata. A luz iluminou o acampamento inteiro, e alguns também já reclamaram de visão embaçada.
 
Eu: — Obrigado, Dr. Miguel. É sempre um prazer ter consultas particulares. — ele riu. Pisquei algumas vezes.
 
Miguel: — Poderíamos combinar, talvez eu possa ser seu médico pessoal. O que acha? — senti dois tapinhas no meu ombro.
 
Eu: — Já me sinto até doente. — ele riu alto, me fazendo rir junto.
 
Miguel: — Parece que nosso passeio vai ficar pra outro dia.
 
Eu: — Ainda temos uma semana. Topo um piquenique.
 
Miguel: — Okay. Acho que vai valer a espera.
 
Mais um dia se passou. Marcelo não dava espaço para nós respirarmos. Como ontem todos receberam um dia de folga por causa da falta de energia e da queda de raios, hoje as atividades seriam em dobro. A energia já voltou, os geradores também, estava tudo muito bem. Conseguiram entrar em contato com a família de alguns alunos, como meu tio, claro, e logo mais uma rodada dos cotonetões foi anunciada. Eu amei. Meu time vem se saindo muito bem. Diogo e Thomas fizeram o Caça ao Tesouro logo de manhã, e foram muito bem. Maior parte das caixas foram encontradas por Thomas, mas nenhuma delas com o Jaguar. Mas rapidamente ele encontrou. Ele tem talento para buscar coisas e encontrá-las. Deveria trabalhar com isso, sendo detetive, geólogo, paleontólogo, antropólogo, astrônomo, sei lá, algo que trabalha buscando alguma coisa.
 
Fiquei feliz em saber que Nathalie e Guilherme estavam bem. Ynatta e Otávio foram conversar com eles e depois me contaram. Essa primeira tentativa dos Jinni foi fácil demais. Temo o poder das próximas, caso tentem de novo.
 
Enfim, essa rodada com os cotonetes gigantes seria um pouco diferente. Um de cada cabana sortearia um aluno qualquer numa urna. Esse aluno sorteado escolheria um outro aluno para brigar. O segundo aluno sorteado escolheria o adversário. Seriam seis batalhas, com uma rodada cada. E, claro, podia repetir alunos pra batalha. Eu fiquei tranquilo, afinal eu queria só me divertir, e a possibilidade de me escolherem é bem pouca.
 
Reynard: — Então, bichinha. Soube por aí que tu tá meio cegueta.
 
Eu: — Soube por aí, não. Você escutou atrás da porta do Marcelo com o Miguel.
 
Reynard: — Ainda assim é uma boa informação. Você tem boas chances de ir lá pra cima. Prepare-se pra cair feio. — ele riu.
 
Eu: — Quer ir contra mim, bonitão? Mesmo vendado, eu arrebento você inteirinho. — tentei focar o olhar nele, mas via apenas sua silhueta completamente borrada.
 
Reynard: — Ah, mas seria um sonho brigar com você lá. Adoraria bater com o pau em você. — ele riu. Franzi as sobrancelhas e o empurrei pra longe.
 
Eu: — Vai se foder, garoto. Me deixe em paz.
 
Miguel: — Luiz Cláudio... — apenas o tom de reprovação do professor foi o suficiente.
 
Reynard: — Pelo jeito não sou o único com vontade de te bater com o pau. — se afastou de nós.
 
Miguel: — Não liga. Ele é chato assim mesmo. Nada fora do normal.
 
Eu: — Ser chato é uma coisa. Ser insuportável é bem diferente.
 
O tutor Izak passou por cada grupo com a caixinha. Thomas tirou uma garota de outra turma, e ela escolheu o Guilherme por um motivo muito peculiar. Disse que ele é um baita gostoso, e ver os músculos dele enquanto ele briga é prazeroso. Escutei a risada nervosa do Gui bem baixinha, e tive que rir. Não posso negar que o Guilherme é gostoso pra caralho. O segundo grupo, o da Alexa e do Luigi, tirou o próprio Luigi. O time inteiro foi pra perto dele falando quem ele deveria colocar como adversário do Gui, e, óbvio... eu escutei tudo o que eles discutiam.
 
Eu: — Ai, ai. Lá vou eu, logo de primeira.
 
Thomas: — Sério? Cê acha?
 
Eu: — Certeza. Estão na dúvida entre mim, você e o Diogo. — Thomas riu.
 
Thomas: — Eu? Ah, até que faz sentido. A gente se odeia.
 
Luigi: — Ah... e-eu não sei... — estreitei os olhos para tentar ver melhor as silhuetas, e vi que Lui coçou a cabeça, bem confuso e... parecia estar corado. Alexa pedia por meu nome, porque ela quer me ver acabando com o Gui. O resto do time estava querendo o Tommy ou o Diogo, e Lui estava confuso.
 
Marcelo: — Pessoal, vocês estão confundindo ele, calma!  — Luigi ficou todo vermelho, e até eu pude perceber o calor que subiu para seu rosto. Fechou os olhos com força. — Deixem ele pensar.
 
Luigi: — Ah, é... e-eu acho que seria legal ter o Príncipe nessa. Me perdoe, Príncipe... não fique bravo comigo.
 
Eu: — Tudo bem, Lui. — acenei na direção dele. Não sei se ele respondeu, mas talvez meu sorriso tenha feito ele se sentir melhor. — Eu amo você, não vou ficar bravo.
 
Guilherme: — Vocês são filhos da puta, hein. — os outros riram.
 
Os outros times escolheram, e... Gui e eu... Nathalie e Lui... Joaquim e Juan... E os outros de outras turmas, eu não os conheço. Seriam seis competições, e começou com a minha.
 
Guilherme: — Bora apostar? Se eu vencer, você me dá um beijo e uma boa noite de sexo.
 
Eu: — Se eu vencer, você cala a sua boca por um mês. — ele riu.
 
Guilherme: — Fala sério.
 
Subimos no ringue e tentamos nos equilibrar nas plataformas. Pra mim foi mais difícil, afinal eu mal enxergava.
 
Miguel: — Você consegue, Luka! Foca nos seus sentidos!
 
Guilherme: — Hum, o professor tá matando cachorro a grito.
 
Eu: — Você fala muito, e com pouca qualidade.
 
Guilherme: — Guardo minhas palavras bonitas pra você.
 
Eu: — Sério? Vai ditar quando? Ou esqueceu parte do cérebro em casa de novo?
 
Marcelo: — Isso mesmo, se provoquem. Agora... briguem!
 
Ele deu início. Consegui escutar Guilherme se movendo rápido, mas os alunos estavam fazendo muito barulho ao redor. Não consegui focar no objetivo. Gui me acertou no peito, me empurrando para a plataforma de trás. Olhei pra baixo e tentei me concentrar no som. Fechei os olhos e... minha cabeça latejou um pouco.
 
Guilherme: — O que houve?
 
Marcelo: — Um detalhe. Luka está com problemas para enxergar. Um dos clarões de ontem queimou a película dos olhos dele, então... Guilherme está em vantagem.
 
Guilherme: — Espera... Isso é sério?! — respirei fundo, ainda tentando me concentrar. — Eu não vou lutar contigo assim!
 
Marcelo: — Oooutro detalhe... Guilherme é bruto e pesado, sendo bom em ataque direto. Qualquer deslize... ele já era.
 
Guilherme: — Professor! Chega, cancela! Eu não vou fazer essa porcaria se ele não enxerga! É injusto!
 
Os sons... são tantos sons... e apesar de serem apenas sons, ao focar toda minha atenção nos meus ouvidos, eu posso... não apenas ouvi-los, mas enxergar os sons como um mapa para as coisas ao meu redor. Aguçando meus sentidos em sua potência máxima, eu consegui sentir as plataformas... senti a distância do chão... senti onde o Gui estava, e tudo com o ecoar sonoro. Como complemento eu sentia o cheiro forte do corpo do Guilherme e o estalar de sua energia elétrica tocando suavemente minha pele. Normalmente eu não sentiria tudo isso, e passaria despercebido. Mas agora... tudo parece ainda mais intenso. Não esperei. Acertei o Guilherme nas costas, o lançando para frente. Ele se manteve em pé, e se virou para mim. Fechei os olhos.
 
Eu: — Eu não acho injusto. Se tiver suas dúvidas, me derrube.
 
Guilherme: — Eu posso te machucar...
 
Marcelo: — Okay, quem vota pra essa partida ser cancelada e reestruturada? — não sei quem levantou a mão, afinal não enxergo, como já disse dezenas de vezes. — Ótimo, maioria. Luka?
 
Eu: — Quero ver quem vai me tirar daqui. — girei o bastão entre meus dedos e me preparei.
 
Guilherme: — Que droga, Luka. Cê tem que aprender a desistir.
 
Eu: — Nem que me paguem. — avancei contra ele. Não tive a intenção de acertar, só queria ter certeza de que eu sentia tudo ao meu redor, até mesmo para onde ele estava indo. Ainda de olhos fechados, desviei do bastão quando iria acertar meu ombro esquerdo. Parei um pouco e ponderei no lugar onde estava, em cima de apenas uma plataforma, mantendo meu equilíbrio. Escutei-o saltando de canto a canto, tentando me distrair.
 
Guilherme: — Vai se guiar pelo som? — respirei fundo. Escutei mais coisas... e mais... e mais. Ele se aproximou rápido e iria acertar-me por trás, mas me esquivei e o acertei no peito, o forçando a perder todo o ar. Ele cambaleou pra trás e quase caiu das plataformas.
 
Não hesitei mais. Fui atrás dele. De alguma forma que não entendo, consegui prever os movimentos que ele faria para me atingir apenas pelo calor que ele exalava e pela movimentação da energia e os ecos ao meu redor, então defendi. Eu não usei minha força real em momento algum... e nem ele.
 
Guilherme: — Sabe que o som pode te enganar, não é?
 
Eu: — Você fala demais. — Fui atrás dele de novo, mas ele correu de mim. Quase passei direto das plataformas e caí fora do ringue, mas percebi bem na hora. Parei e me virei, tentando descobrir onde ele estava. Achei que já estava demorando muito.
 
Respirei fundo mais uma vez e... do nada todos ficaram em silêncio. Pude escutar com ainda mais intensidade e... sentir o cheiro que o Gui exalava. Escutei-o tirar um pé do chão... e não ouvi-o pisar de novo. Tirou outro pé do chão em.. silêncio. Era como se ele estivesse flutuando. Tenho certeza de que ele tirou os sapatos, mas me nego a cair nesse truque. Estou temporariamente sem a visão, mas ainda não sou burro. Avancei na direção onde ouvi sua última pisada, mas não havia ninguém. Senti o cheiro forte dele, e foi se dissipando. Olhei para a esquerda... o cheiro estava mais fraco... Me virei para a direita e saltei três plataformas. O cheiro estava mais forte, mas se dissipava rápido. Escutei uma pisada rápida à minha esquerda, e me assustei. Pensei rapidamente em atacar, mas... à esquerda o cheiro dele estava bem fraco. Se ele estivesse mesmo vindo pela esquerda, o cheiro se intensificaria rapidamente, e a escala térmica ao meu redor subiria, ficando mais quente por conta da temperatura dele influenciando meu radar de calor, herdado da família da minha mãe. Por outro lado, senti a brisa quente chegando à diagonal traseira direita. Como reflexo rápido, e um bom raciocínio, ataquei para a esquerda e escutei-o soltar um ar confiante da vitória, mas... rapidamente abri os olhos, encarando a direção de onde ele realmente vinha, e ataquei com força mediana. Não sei onde acertei, mas ele caiu feio. Arrumei minha postura e... escutei o bastão acolchoado dele caindo também.
 
Eu: — O som pode até me enganar... mas seu cheiro não.
 
Escutei-o liberar o ar, já rendido à minha vitória. Sorri e mordi o lábio inferior.
 
Guilherme: — Ai, cara... que ódio, estava no papo... — ri.
 
Fui dar um passo, mas já tinha me desconcentrado. Pisei em falso e, como já estava na beirada do ringue, tombei pra trás. Iria cair feio no chão, e senti o vento batendo na minha nuca. Por sorte meus ossos cetorianos irão absorver o impacto e eu não vou me ferir. Bom... até eu sentir que caí em algo muito, mas muito macio e... e cheiroso. Senti seus braços me agarrarem por trás, impedindo que eu caísse contra o chão. Eram braços fortes e densos, mas com toque suave. Meu peso parecia nada ali. Achei até que fosse o Marcelo... até porque o único com os bíceps daquele jeito é ele... pelo menos eu achava.
 
Miguel: — Uh! Te peguei...
 
Na hora, mesmo não conseguindo enxergar, senti um calafrio percorrer meu corpo inteirinho com o toque dele em mim. Não sei o motivo, mas foi... gostoso. Ele não me soltou de imediato, apenas parecia estar verificando se eu estava bem.
 
Eu: — O-obrigado... — ele me pôs no chão, me ajudando a manter meu apoio nos pés. — Nossa, obrigado por isso, Miguel.
 
Miguel: — Tudo bem? Se machucou? Te segurei de mal-jeito? — suspirei e ri, negando com a cabeça.
 
Eu: — Não. Reflexo perfeito, pegada perfeita. — ele riu. Senti meu rosto queimar um pouco pela situação. Aliás... e que pegada perfeita! — Estou bem. Muito obrigado.
 
Marcelo: — Eeeeeee vitória do Luka, óbvio! Para a surpresa dos que ansiavam pela desistência!
 
Me apoiei no ombro do Miguel e ele me guiou até meu grupo.
 
Miguel: — Eu sabia que venceria, mesmo em desvantagem. Sua destreza me encanta.
 
Eu: — Seus reflexos me encantam. — rimos. Escutei meu grupo comemorar, e logo todos vieram me abraçar, me causando um certo enjoo por tantos odores juntos.
 
Logo a próxima briga começou. Nathalie e Lui. Não pude ver, e eu queria muito. Sentei-me e senti o cheiro gostoso de shampoo de bebê ao meu lado. Miguel se escorou em meu ombro e começou a narrar o que acontecia no ringue, onde eu podia apenas escutar as vozes da Nath e do Lui.
 
Miguel: — Ambos subiram no ringue. Nathalie parece confiante. Luigi parece... pleno. — eu ri. A expressão natural do Lui é sempre calma e fofa. Normal.
 
Nathalie: — Não quero que cê pegue leve, Lui. Faça o que você sabe fazer.
 
Luigi: — Tens certeza, Princesa?
 
Nathalie: — Sim, é uma ordem. Eu também não vou pegar leve contigo.
 
Miguel: — Hum, Luigi agora também parece confiante. — escutei Marcelo dar a partida. — Nathalie foi pro ataque direto, tentando golpeá-lo no rosto, mas... uau, ela é rápida, mas ele é bem esquivo.
 
Eu: — Luigi ataca com a defesa. Se Nath se esquecer disso, ele vai desarmá-la e derrubá-la.
 
Miguel: — Ela continua atacando, dando passos perfeitos nas plataformas. Luigi não saiu do lugar, se mantém intacto como se tivesse raízes. — sorri. Por mais que eu queira torcer para a Nath, ela só tem dezessete anos. Ainda é bem inexperiente diante de um soldado formado com mais de setenta anos terráqueos. — Ela não vai se cansar, e nem ele, aparentemente. Ela continua atacando sem parar, sem dar espaço para ele respirar... NOSSA!
 
Escutei o impacto e... do nada todo mundo gritando o nome do Lui. Escutei a risadinha fofa dele, e até da Nath rindo junto.
 
Eu: — O que aconteceu? — segurei o braço do Miguel, ouvindo sua risada gostosa.
 
Miguel: — Enquanto ela o atacava sem parar, ele se esquivou o máximo que podia e... quando achei que ele se esquivaria de novo, ele defendeu, girou o bastão dele e prendeu o bastão dela, a forçando a soltá-lo e ficar desarmada... então Luigi apenas a empurrou com um toque dos dois bastões. Ela caiu e... ele venceu.
 
Eu: — Sabia! — rimos. Todos ao redor comemoravam a vitória do Lui. Aparentemente todo mundo ama ele. Mas é impossível não amá-lo.
 
Logo começou também a de Juan contra Joaquim. Eu estava torcendo muito pro Joca, e quero muito que ele ganhe... apesar de Juan parecer ser bem bruto e esperto. Joca é impulsivo, e Juan é mais observador e cuidadoso. Miguel continuou narrando tudo pra mim. A briga começou bem, com os dois estudando um ao outro. Ninguém queria atacar primeiro, porque isso revelaria um traço de fraqueza deles, e isso seria crucial para a vitória de um e a derrota de outro. Foi a batalha que mais durou. Joca tentava atacá-lo de longe, mas Juan defendia bem.
 
Eu: — Não quero torcer contra o Juan, mas... quero que Joca ganhe essa.
 
Miguel: — Mas parece que não é importante pra nenhum dos dois. Joaquim parece querer se divertir, pois está sorrindo e brincando. Juan está... com a cara de que está acorrentado e sendo forçado a estar ali. — eu ri. Nada de anormal também.
 
Depois de focarem em poucos ataques, parece que Juan se cansou e atacou diretamente. Joaquim até tentou se defender, mas Juan foi bruto e o desarmou usando o próprio ataque do Joca como impulso. Por fim deu-lhe uma rasteira.
 
Juan: — Sua força vem do quadril, não dos ombros e nem dos cotovelos. Sua postura está incorreta, perdeu a base e ficou sem apoio. Estude mais sua postura numa briga. Duvidar de si e de como agir no momento só te levará à derrota. — e desceu do ringue, voltando pra perto de nós.
 
Eu: — Parabéns. Além da vitória, deu a dica perfeita pra ele melhorar, e sem ser rude.
 
Juan: — De nada.
 
Ficamos ali até a última batalha do dia, que Miguel se dispôs a narrar tudinho nos mínimos detalhes pra mim. Cada vez mais ele me surpreende, sendo mais fofo a cada momento que passamos juntos. Tô começando a desconfiar dele. Miguel parece mais um símbolo de perfeição criada por uma sociedade iludida, do que uma pessoa normal real.
 
Eu: — Obrigado por narrar praticamente tudo o que aconteceu hoje. Você é o professor mais incrível que eu já tive, sério.
 
Miguel: — Ah, não se preocupe com isso. Vou fazer o mesmo amanhã, daí posso me tornar ainda mais incrível. — ri e me distraí com ele. Tropecei e quase caí, mas ele rapidamente me segurou e serviu de apoio. — Cuidado...
 
Eu: — Droga... obrigado de novo. E perdão, quase te derrubei também. — ele riu de uma forma... diferente. Uma risadinha mais soprosa.
 
Miguel: — Enquanto eu estiver por perto e você cair, eu caio primeiro pra que você não se machuque.
 
Ah, pelos deuses... eu queria muito ver a cara dele naquele momento. Sua forma de falar foi tão calma, tão... suave e serena... tão gostosa de ouvir. Meu corpo inteiro arrepiou. Eu não sei se foi uma investida dele, ou foi apenas outro das dezenas de comentários fofos que ele faz o tempo todo.
 
Eu: — Own... que fofo...
 
Miguel: — Oh... ah, me perdoe, eu não quis parecer tão... ah, não, estou parecendo um idiota! — ri.
 
Eu: — Não, não. Isso foi muito fofo, sério. Queria poder ver sua expressão agora, de verdade. — tenho certeza de que também corei. Estreitei os olhos e... tentei focar em sua silhueta. Eu podia vê-lo bem melhor que antes. Agora pelo menos consigo identificar alguns detalhes, contrário ao início do dia.
 
Miguel: — Bom... a expressão de bobão de sempre.
 
Eu: — Eu queria ver sua cara de bobão.
 
Rolou um silêncio. Estávamos sentados sozinhos na arquibancada, sob a luz da lua e das estrelas, do céu limpo e lindo, que no caso eu não podia ver, mas sentia a vibe do dia quente. O resto dos alunos estão no refeitório, mas o barulho lá me incomoda. Estão falando muito alto, são muitos odores, e minha cabeça não está das melhores. Depois do contato com o Djinn, eu tenho certeza de que mais algumas memórias se foram. Eu não me sentia muito bem, mas... Miguel me acompanhou quando eu tentei sair sozinho de lá. A companhia dele afasta todo sentimento ruim, e eu só sinto... paz. Todo turbilhão de pensamentos se acalmava quando escutava aquela voz calma e os conselhos sensatos. Ele tem um talento incrível pra me acalmar, e eu gosto disso. Queria poder dizer que... eu sinto uma certa atração por ele, mas isso não pode acontecer, afinal ele é meu professor e mais velho que eu. Preciso respeitá-lo acima de tudo... apesar de ele ser um baita gostoso.
 
Miguel: — Você não sabe o quanto eu quero te mostrar meu lugar preferido daqui.
 
Eu: — Você não sabe o quanto quero conhecê-lo.
 
Mais um silêncio. Senti sua mão deslizar por meu braço, até tocar meu dedo mindinho direito. Ao tentar tocar-me, escutei um barulho próximo a nós.
 
Reynard: — Ah, estão de namorico aqui, né?! — revirei os olhos ao ouvir sua voz.
 
Miguel: — O-o quê?! Não!
 
Reynard: — Olha só, seu safado pilantra, dando em cima do seu aluno. Deixa só o Marcelo saber disso. — desceu as escadas do anfiteatro pra me atormentar mais um pouco.
 
Miguel: — Eu não estava...
 
Reynard: — Tava sim! Tu fica o dia todinho atrás dele como um cachorrinho de madame, seu puto!
 
Eu: — Olha o respeito! Não fala assim com ele!
 
Reynard: — Tá defendendo ele porque tu quer dar pra ele. Isso tá na cara. Agora vão dormir, o toque de recolher já soou.
 
Eu: — Caralho, que garoto insuportável, pelos deuses! — Miguel riu.
 
Miguel: — Isso não é nem o começo. — me ajudou a levantar e serviu como meu apoio de novo.
 
Reynard: — Tá se fingindo de ceguinho pra tirar uma casquinha do professor, né? Haha, você não me engana, hein. — respirei fundo e tentei ignorar. — E aí? Já rolou? Conta mais. Usou o brinquedo, Miguel?
 
Miguel: — Luiz Cláudio do céu... cale a boca, pelo amor de Deus.
 
Uau! Ele conseguiu tirar a paciência até do Miguel! Esse garoto tem o poder de um deus!
 
Reynard: — Ué, tá com vergonha, é? — saímos do anfiteatro, e o insuportável veio atrás.
 
Miguel: — Pela última vez, não há nada entre a gente. Luka quis ficar sozinho, mas tive receio que ele se machucasse, então vim conversar com ele. Só isso! Larga a mão de ser chato.
 
Reynard: — Ah, tá bom. Conversem com a boca no...
 
Eu: — Mano, você é muito chato! Puta que pariu! — ele riu. — Deixe a gente em paz, volte pro inferno de onde você veio!
 
Reynard: — Tá, tá. Mas... vem cá, tem espaço pra mais um? Tipo, o Thomas não para de me encher o saco falando de você. Aceite o otário de volta, mesmo que esteja trepando com nosso professor.
 
Ah, santa paciência. Me soltei do Miguel e disparei na frente, tapando os ouvidos. Não me importei em tropeçar, em me estilhaçar ao cair no chão. Só quis voltar pra minha cabana logo. Meus olhos já estavam bem melhores. Fui para o centro de passagem, onde alguns alunos se direcionavam para suas respectivas cabanas.
 
Reynard: — Ei, ei! Espera, porra! Se o viado corre, o lobo vai à caça, hein! — sua gargalhada estressou meus neurônios. Mudei a direção. Fui para mais perto da cabana do Marcelo. Ao me aproximar de lá, com Reynard me seguindo, esperava que Marcelo ou Otávio me salvassem dessa praga, mas não tinha ninguém lá perto. Senti as mãos fortes do moleque chato segurando meus braços, e tentei me afastar dele. — Calma, calma! Ou, tá com medo de mim?
 
Eu: — Me solta! Se tocar em mim de novo, eu quebro seus dentes!
 
Reynard: — Ué, achei que curtisse machos te segurando.
 
Eu: — Cara, me deixa em paz! Qual o seu problema comigo?! Essas piadinhas de humor obscuro sobre gays não vão fazer ninguém rir. A única piada aqui é você!
 
Reynard: — Ih, ficou putinha, é? Vai o quê? Me dar tapinhas agora, é? Ah, tô cheio de medo.
 
Eu: — Olha só! Seu humor tóxico da geração passada já deu! Já chega. Pare de agir como a porra de uma criança imbecil e cresça, cara! Pelo amor de Deus!
 
Reynard: — Quem tá querendo virar mocinha aqui é tu. Merece ser zoado.
 
Eu: — Ninguém aqui está querendo virar nada. Eu sou eu, você é você. Não é porque eu não gosto de laranja, que você também é obrigado a não gostar. Não é porque eu gosto de azul e verde, que você é obrigado a gostar. Somos duas pessoas diferentes, eu possuo meus sentimentos e preferências, e você tem as suas! Consegue distinguir?! — fechei os olhos com força, sentindo minha cabeça latejar algumas vezes. Sempre que algo me causa um estresse muito grande, faz minha cabeça latejar e doer. — Não quero ser mocinha e nem pretendo, e assim como eu, você deveria respeitar mesmo se eu quisesse. Eu tenho a mesma porra que você tem entre as pernas, e eu me sinto confortável com quem eu sou e eu vou continuar sendo. Eu sou homem cis gay, você é homem cis hétero. Vá estudar um pouquinho e pare de tentar usar o gênero das pessoas como insulto a outras. Isso é coisa de moleque burro sem noção!
 
Ele ficou em silêncio. Pus as mãos em minhas têmporas e gemi baixo, sentindo a dor forte desorganizar minha mente inteira.
 
Reynard: — Cara... cê tá bem?
 
Eu: — Óbvio que não!!! — gritei. minha cabeça doeu ainda mais forte, a um nível difícil de suportar. Agarrei meu cabelo com força e me curvei para frente, gemendo de dor. Me ajoelhei. Senti suas mãos tocando meus ombros, mas me debati e o forcei a se afastar de mim. Abri os olhos e senti uma ventania se iniciar ao meu redor. Não era vento normal... era minha telecinese perdendo o controle mais... mais uma vez.
 
Reynard: — Ca-calma, mano... não é pra tanto...
 
Queria gritar pra ele sair de perto de mim, mas não só porque ele me irrita, mas... porque eu realmente estava com medo de machucá-lo sem querer, da mesma forma que quase fiz com os outros na câmara, com aquele pulsar telecinético... que rasgou até as roupas do Marcus quando ele tentou se aproximar.
 
Miguel: — Luka... Luka... calma... — escutei seus passos. As coisas se acalmaram assim que senti seu toque calmo ao meu redor, em um abraço apertado. O abracei de volta e tentei relaxar em seus ombros. A ventania foi se acalmando, até que tudo parou, até mesmo minha dor de cabeça.
 
Marcelo: — Luiz Cláudio Reynard... pra dentro. Agora. — ele abriu a porta e saiu, vindo direto até nós.
 
Reynard: — Mas eu não fiz...
 
Marcelo: — Agora não! Eu mandei você entrar e ponto final. — seu tom de voz sério e autoritário fez o garoto se calar rapidamente e se dirigir à cabana do professor.
 
Reynard: — Brincadeira, hein. Caralho. Posso nem brincar, nem fazer nada, tá tudo...
 
Marcelo: — Entre. Lá dentro a gente conversa. Fique calado e me espere no meu quarto. Se desobedecer, eu dou um jeito de comprar sua passagem hoje mesmo. — Reynard entrou sem pestanejar.
 
Miguel: — Marcelo... dê um jeito nesse garoto. Tá ficando difícil de suportar essas palhaçadas de mal gosto.
 
Marcelo: — Está bem, Luka? — Miguel afrouxou o abraço. Assenti negativamente e respirei fundo. — Miguel, volte pra sua cabana. Seus alunos estão sozinhos. Deixe que eu assumo daqui.
 
Miguel: — Mas, Celo...
 
Marcelo: — Eu sei, eu sei. Isso também é minha responsabilidade. Luka e eu precisamos conversar.
 
Miguel: — Luka, eu... — segurei seus braços. Não queria que ele se afastasse, afinal ele conseguiu me acalmar com muita facilidade. Parece mais seguro ficar perto dele. — Olha, vou estar te esperando na nossa cabana. Qualquer coisa, é só me chamar. Vou ficar atento, e só vou dormir depois que todos do nosso grupo estiverem lá, inclusive você.
 
Eu: — T-tudo bem... obrigado. — o soltei. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas nenhuma caiu. As lágrimas acumuladas foram boas para limpar meus olhos e me ajudar a enxergar melhor. Agora estava tudo embaçado de forma diferente. Eu podia ver com mais clareza, mas as luzes estouravam, e eu estava vendo as coisas duplicadas. Miguel foi e me deixou com o Marcelo. Não sei sobre o que ele quer falar exatamente, mas já tenho uma ideia.
 
Marcelo: — Me conte.
 
Eu: — Esse garoto é insuportável. Ele parece ter uma fixação por mim, e não me deixa em paz! O tempo inteiro, e nem o Miguel escapa desse garoto chato! — ele cruzou os braços e apenas assentiu. — Eu não suporto ele, não aguento mais ele, antes eu até acha divertido caçoar dele, mas... mano??? Ele tem algum problema?!
 
Marcelo: — Ah, sim. Ele tem. Tem muitos problemas. — senti seu toque em meu ombro esquerdo, me empurrando suavemente para frente. — Venha comigo.
 
O acompanhei para longe das cabanas. Ele me levou de volta para o anfiteatro, onde nos sentamos no primeiro degrau.
 
Marcelo: — Essa é sua opinião sobre ele, e eu vou escutá-la. Mas não vou torná-la minha e nem deixar que essa opinião influencie o que eu sei. Releve um pouco, ele não quis...
 
Eu: — Relevar?! Eu só não machuquei ele porque Miguel apareceu. Caso contrário... — suspirei, tentando não me exaltar de novo. — Eu odeio esse moleque.
 
Marcelo: — Não o odeie, eu te peço. — tocou meu ombro com calma. — Ele não merece que as pessoas o odeiem, assim como você não merece ser tratado da forma que ele te trata. Eu tenho certeza de que por dentro ele não quis te incomodar assim, e se machucou também. Há muito mais por trás dessa falsa personalidade que ele mostra, do que possamos imaginar.
 
Eu: — Então esse moleque insuportável é só um papel? Ele tá dando uma de Guilherme agora? — ele riu e coçou o queixo.
 
Marcelo: — É, os dois passaram por certas coisas parecidas, mas são casos com lados divergentes, e... sim. Algumas pessoas possuem uma defesa natural para lidar com alguma situações que os ferem psicologicamente. Muitas criam um alter-ego com o qual se adaptam e aprendem a conviver o tempo inteiro. Como o Guilherme de um ano atrás... como o Joaquim de um ano atrás... Como eu há uns anos atrás. Pessoas fracas geram momentos potencialmente dolorosos para elas mesmas. Assim como eu mudei, o Guilherme mudou e o Joaquim mudou, eu ainda tenho fé que meu garoto vai mudar.
 
Eu: — Você gosta muito dele, né? — ele riu. Sinto que agora vem história e... mais um momento de absorver experiência do professor mais sábio que eu tenho.
 
Marcelo: — Você não sabe o quanto. Quando eu me formei, Cláudio foi um dos meus primeiros alunos. O cara mais participativo, alegre, e curioso da turma. Ele chamou minha atenção. Sempre foi muito inteligente, e vivia ditando artigos científicos pra mim. — o sorriso dele era... sincero e gostoso de ver. Ele parecia realmente amar suas lembranças. — Dizia querer se tornar cientista, estudar os planetas, as estrelas, e dar seu sobrenome a um astro descoberto por ele. Eu não sei, havia uma paixão naquele garoto que chamou minha atenção. Acompanhei o crescimento dele, e vi a forma que ele ficou ao se afastar do melhor amigo. Não conheci Thomas muito bem, afinal ele tinha se mudado de outro colégio, mas Cláudio e ele cresceram juntos. A amizade era forte, não se separavam um segundo sequer. O tempo se passou e... ele foi obrigado a ir embora. Os pais dele pegaram uma transferência com urgência e... sumiram. Não avisaram ninguém para onde iam, e Thomas até se conformou ao pensar ter sido abandonado pelo melhor amigo. Eu não me conformei. Fui atrás, juntei informações, movimentei amigos nos tribunais e no governo, e descobri para onde a família Reynard tinha se mudado. Itália. Fui atrás, arranjando emprego lá e mantendo contato com o moleque deslocado. Me tornei o melhor amigo do garoto que perdeu todas as pessoas próximas.
 
Eu: — Você não contou pro Thomas onde o Rey foi?
 
Marcelo: — Não. Thomas estava vivendo a vida dele, e meu foco era nos Reynard. Se eu pudesse te mostrar a diferença entre o Luiz Cláudio que eu conheci e o que você conhece... cara, são duas pessoas completamente diferentes.
 
Eu: — Sério? — ri. — Não consigo imaginar ele de outra forma, a não ser sendo insuportável o dia todo.
 
Marcelo: — Não, mas ele sempre foi chato. Mas não dessa forma. Ele é um garoto carinhoso, gentil, amoroso, disposto a ajudar e verdadeiro. Ele costumava se entregar demais a tudo, o cara mais dedicado que eu conheci. Foi então que as coisas ruins começaram a acontecer com ele. Os pais se envolveram em lavagem de dinheiro na política, e isso afetou toda a família. Quando estavam sendo investigados, todos os bens foram bloqueados. Com a falta de pagamento nas escolas, ele e a irmã mais nova foram expulsos. A irmã mais velha, para manter os luxos, passou a se prostituir dentro da própria casa na ausência dos pais. Cláudio presenciava tudo, inclusive seu irmão mais velho se drogando e se afundando nesse poço sem fundo. Dauro, o irmão mais velho, faleceu alguns meses depois que os pais deles foram descobertos... uso excessivo de drogas e remédios sem prescrição médica. Quem descobriu o corpo foi o próprio Cláudio, estirado perto da piscina em meio a cigarros, seringas e garrafas de bebidas alcoólicas.
 
Permaneci em silêncio. Preferi não interrompê-lo naquele momento da história. Marcelo não tinha mais o sorriso feliz no rosto, e nem me olhava mais nos olhos. Ele olhava pro chão. Parecia melancólico ao relembrar disso.
 
Marcelo: — Com o desespero, ele ligou primeiro pra mim, sem saber o que fazer. Eu contatei a polícia. Eu vi recolherem o corpo do irmão dele enquanto ele chorava a ponto de perder completamente a voz no dia seguinte. Mas esse ainda não é o final da história. Os pais dele fizeram muitas besteiras em diversos países. Foram julgados, mas os juízes subornados os declararam inocentes. Isso gerou uma revolta nesse país. Queriam a família toda presa, queriam todos mortos, e todo esse ódio caiu nos ombros do pobre Luiz Cláudio. Eu não pude deixar que ele carregasse esse peso, então assumi o fardo. Evitei que tudo fosse direcionado a ele e à irmã mais nova. Eram muito jovens, apenas crianças ao meu ver. Não entendiam o real peso da situação. Mas então... — ele parou por um momento e suspirou.
 
Eu: — Suas histórias são sempre tristes... não precisa contar se não se sentir confortável, professor.  — ele coçou os olhos e me ignorou.
 
Marcelo: — Dezenove de fevereiro. Começaram a estudar numa nova escola semanas antes e estavam animados, tentando superar a perda recente do irmão mais velho. Um carro preto rodeava o bairro o dia todo, mas ninguém notou algo de estranho. De manhã saíram de casa e foram ao colégio. Cláudio precisou ficar até tarde estudando porque eu pedi que ele ficasse. Ele se sentia bem comigo, e odiava sua própria casa, então paguei sorvete e ficamos estudando juntos. Mais cedo, suas tias apareceram, como sempre faziam todo mês para passar um tempo com eles, e pegaram a caçula dele, Nadila, na escola. Cláudio se recusou a ir, porque precisava estudar, mas marcou de encontrá-las mais tarde. Naquele mesmo dia o carro em que as tias dele estavam foi severamente fuzilado assim que entrou na rota da mansão dos Reynard. Uma tia e um primo de dois anos morreram no hospital... uma tia ficou paraplégica e... Nadila Reynard morreu na hora, com apenas oito anos de idade.
 
Eu: — ... — arregalei os olhos. No mesmo momento tentei ser empático e me colocar na mesma situação. Só de imaginar algo acontecendo com o Cássio, meu coração apertou e... meus olhos se encheram de lágrimas. Cássio é tudo pra mim, eu me perderia completamente sem ele. A gente briga pra cacete, mas eu amo essa peste mais do que qualquer coisa nesse mundo. Perdê-lo seria o fim pra mim. Não dá pra imaginar o que Rey deve ter sentido, mas a dor... deve ser tanta...
 
Marcelo: — Quando a notícia chegou, eu tive que ficar vinte e quatro horas por dia de olho nele. Ele chorava, chorava, como se o mundo inteiro estivesse acabando aos poucos. De tudo o que ele tinha, ele perdeu o que tinha de mais precioso. Eu sofri junto com ele, eu chorei junto com ele, e quando ele tentou suicídio, eu morri com ele tantas vezes... eu fiz de tudo para que ele me aceitasse como família, pra que ele me olhasse com respeito e afeto. Mas naqueles olhos só crescia o ódio.
 
Eu: — Ele... se deixou levar pela raiva. Culpava os pais pelo que aconteceu, não é? — Marcelo assentiu. — Queria vingança...
 
Marcelo: — Denunciou os pais diversas vezes, entregou provas, mas os juízes foram comprados. Tudo estava nas mãos dos pais dele. Cláudio passou a odiar seu sobrenome, dizendo ser amaldiçoado. Todos eram consumidos pelos pecados, ganância, luxúria, soberba... ira... o ódio que ele sentia o levou a caminhos tenebrosos. Quantas vezes eu tive que buscá-lo ao lado de ambulâncias, e pagar os melhores médicos para que lutassem pela sobrevivência daquele garoto perdido. Se entregou às drogas, e quase morreu como Dauro. A depressão dele foi tão profunda, que só de chegar perto dele, você já sentia a energia obscura o circundando, o peso no ar, todo o sofrimento que o rodeava. As coisas só melhoraram quando consegui na justiça a guarda dele. Como presente, dei um relicário com a foto de Nadila, para que ele se lembrasse de quem ele é... mas parece que ele ainda está perdido. Parece que ele quer estar perdido.
 
Eu: — Ele tem trauma... talvez tenha medo de criar uma família e ele perder todos de novo.
 
Marcelo: — Não, pior. O trauma dele é construir uma família e ele mesmo estragar tudo. Ele tem certeza de que o nome dele o matará um dia, e isso me deixa tão... triste. — sim, dá pra perceber. O que Marcelo sentia estava bem expresso no olhar dele. — Eu vi aquele garoto crescer. Eu estive presente na vida dele e vi todas as fases pelas quais ele passou. Eu conheço aquele moleque como a palma da minha mão, como meu próprio filho, e sei que aquele cara maneiro ainda está lá dentro. Sinto muita falta do sorrisão... dos artigos científicos, das explicações das constelações e tal. Sinto falta do que construímos. Mas ele só faz se isolar e ser rude, abandonando qualquer traço de sentimentos. Eu só....
 
Eu: — Eu já entendi. — ri baixo e olhei pra baixo. Brinquei com meus dedos  ainda vendo tudo em dobro. — Você quer que eu traga a essência dele de volta. — ele suspirou e ficou em silêncio por um tempo.
 
Marcelo: — Miguel e eu temos te estudado desde que te conhecemos. Mas você é uma incógnita pra nós... pra todos os seus professores. Há algo aí que desperta a alma das pessoas, que as faz se aproximar de você. Não sei se é sua franqueza, sua destreza, sua ousadia ou é apenas a sua própria essência. Mas de uma coisa Miguel me fez ter certeza. É a sua alma que o torna tão especial para aqueles que se aproximam de você. É uma alma velha, experiente, que entende o lado dos outros. A sua alma está aqui há séculos, milênios, eras... e muitos sentem essa conexão. Eu acho que... só você pode salvar meu garoto.
 
Eu: — Mas isso não dependeria apenas de mim. É uma história foda, mas... se ele não quer deixar os outros entrarem na vida dele, eu serei inútil.
 
Marcelo: — É, eu sei. — suspirou de novo e olhou para baixo. Nunca vi o professor marrento tão frágil na vida! Logo ele sorriu, meio desajeitado. — Ah, mas não se preocupe com isso. Uma hora a ficha dele vai cair mesmo. Eu só espero que... não seja tarde demais.
 
Ficamos em silêncio. Ele parecia estar pensando profundamente, e eu apenas olhava pra lugar nenhum. Cara, o garoto perdeu dois irmãos. Eu acho que comigo não seria diferente, eu mudaria completamente, me apegaria à ira eternamente. Guilherme também mudou ao perder o pai. Parece que o luto muda as pessoas. Não quero nem imaginar o que o poder do luto pode fazer comigo.
 
Marcelo: — Depois do Otávio, ele é a coisa mais importante na minha vida. Se fosse preciso, eu doaria minha vida a ele... daria minha vida pela dele. Desejo todos os dias que ele fosse meu filho biológico, mas eu sei que numa vida passada ele foi. Temos uma conexão muito foda, e eu admiro isso. Otávio e ele não se dão muito bem, mas eu tenho certeza de que um dia eles serão como irmãos e se entenderão... defenderão um ao outro... ajudarão um ao outro. — ele suspirou e sorriu mais uma vez de forma descontraída, olhando pra cima. — Eu sou um cara mó chato e exigente, sei que sou marrento e bem cabeça-dura. Mas.... eu tenho saudade do abraço dos meus filhos. Otávio e eu brigamos algumas vezes, e como ele não mora fixo comigo, ficamos um tempo sem nos falar... e ficar sem falar com ele se torna o fim dos tempos pra mim. E assim como acontece com Otávio, é a mesma coisa com o Cláudio. Nós brigamos, mas eu o amo. Sinto falta dos abraços apertados que o moleque me dava depois das aulas. — se levantou e se espreguiçou. — Bom, já está tarde. Vamos voltar.
 
Marcelo me levou até minha cabana. Passei o caminho todo em silêncio. Miguel estava na janela olhando o ambiente, e vi de longe o sorriso dele ao nos ver. Ele abriu a porta e foi conversar com o Marcelo, enquanto eu fui me deitar. É... as coisas nem sempre são como parecem, afinal. Por mais que deixem transparecer uma coisa, às vezes por baixo há todo um universo oculto. A famosa ponta do iceberg.


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ABOOH : Amores Sobre-Humanos Where stories live. Discover now