CAPÍTULO 106: Intervenção

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[Narrado por Luka]


Ao sentir como se meu cérebro estivesse derretendo, só consegui pensar em me afastar da sala para não desmaiar no meio da Necrópsia. Nem pensei em tirar as luvas. Só corri, e os outros vieram atrás de mim ofegantes. Me pus contra a parede e tentei reorganizar meus sentidos. As vozes dos outros vinham de lados opostos, minha visão estava alterada e borrada, eu não conseguia falar, mas logo passou. Me recompus e olhei para os outros escorados nas paredes, assim como eu.

Guilherme: — Mas que... porra foi essa??? — se virou para nós. Me aproximei deles e evitei tocar em algo com as luvas manchadas com sangue. Será que é mais um efeito colateral dos Jinni?

Eu: — Será que tem a ver com o efeito colateral de termos sido pegos pelos Jinni? — Marcus tocou a cabeça e negou... afinal ele também sentiu, e ele não foi pego pelos Jinni.

Marcus: — Não, eu não fui afetado por eles. Parece que foi uma interferência telepática. Talvez seja uma resposta nervosa póstuma do cadáver após Mickael massagear o coração. Deve ter bombeado um pouco de sangue pro cérebro, e o nervo causou esse bug.

Nathalie: — Isso é possível?! Telepatia de um defunto???

Realmente. Se Anco está morto, como ele ativou esse efeito apenas sobre nós? Ele desorganizou meus pensamentos, e nada parecia fazer sentido lá dentro, e quando saímos, tudo melhorou. Foi como uma onda eletromagnética desativando computadores. E essa explicação do Marcus não faz sentido algum. Se o corpo já está morto há semanas, os nervos não deveriam responder a uma gotícula de sangue tão facilmente. Pelo que li, os nervos só reagem quando a morte foi espontânea e muito recente... como os tentáculos de um polvo se movendo mesmo depois de ter sido arrancada. Que nem o rabo de uma lagartixa após se separar do resto do corpo. Se houve essa reação, quer dizer que o cérebro ainda está vivo, ou... um pouco vivo. E se o cérebro está vivo...

Marcus: — Foi apenas uma reação dos nervos. Vai passar.

Eu: — Ou ele ainda está vivo... — falei baixo, olhando para o chão.

Tá, eu sei que isso é impossível, afinal tiramos quase todos os órgãos de dentro dele, e ele não pode do nada acordar. Ele está morto, eu sei, eu sei. Mas algo dentro de mim despertou uma ideia maluca. E aquela interferência não iria parar tão rápido, se for o que eu acho que é. Passei por Marcus e entrei na sala de novo. Ele tentou segurar meu braço, mas não foi rápido o suficiente. Assim que passei pela porta, caí de joelhos. A gravidade ali dentro parecia excruciantemente mais pesada, e me causava muita dor. Não consegui me levantar do chão. Rangi os dentes e escutei os outros tapando os ouvidos e chamando meu nome lá de fora.

Tá... não posso desistir. Anco, eu tô chegando, e se isso foi um sinal, por favor continue. Só se isso continuar, eu vou saber que não é um espasmo nervoso momentâneo. Você está tentando se comunicar de alguma forma, e eu quero escutar você. Vamos lá!

Me levantei, enfrentando a força daquela interferência. Meu corpo não queria me obedecer, meus sentidos não queriam me obedecer, mas eu os forcei a acatar minhas vontades. Ao me por de pé, fechei a porta para que os outros ficassem seguros, e corri para dentro. Voltei para perto de Mickael, rangendo os dentes com força ao tentar aturar a dor de cabeça. Consegui reorganizar meus pensamentos, e pus cada palavra, de cada página, de cada livro que tive tempo de ler sobre o assunto que estamos focados hoje, no lugar certo. Eu sou um Príncipe de Kroath. Eu não nasci para ser fraco, e não vai ser um ataquezinho telepático que vai me matar. Eu me recuso a morrer assim.

Mickael: — Luka, saia daqui!

Eu: — Não! — senti algo escorrendo do meu nariz. Mickael olhou, e senti pingar nos meus lábios. O gosto forte e doce do meu sangue inundou minha boca. Senti algo escorrer por meus ouvidos, e descer por meu pescoço, e não precisei pensar para descobrir que também é sangue. — Vamos continuar. — toquei o coração opaco do cadáver.

Mickael: — Luka, não! Isso está te machucando, saia daqui imediatamente! — gritou comigo, e segurou meus braços.

Eu: — Mickael, me escute. Nós precisamos colocar tudo dentro dele de novo com emergência. Você se lembra da ordem dos órgãos?

Mickael: — A-ah... S-sim, eu acho que sim. Minha memória nunca falha, eu me lembro de como é.

Não perdi tempo. Fui passando cada pedacinho do corpo pra ele, e fomos montando como um quebra cabeça. O sangue ainda escorria por meu nariz e por meus ouvidos sem parar, mas tentei não ligar pra isso agora. Meu foco é o cara deitado nessa mesa com as entranhas para fora do corpo. De repente o cheiro de sangue só aumentou. Ficou tão forte, mas tão forte, que tive que me afastar e parar um pouco por causa das náuseas. Até mesmo Mickael se afastou e virou de costas. O cheiro de sangue novo dominou a sala. Pela força do cheiro, a quantidade sendo produzida deve ser...

Ah... enorme... uma quantidade enorme. Uma poça de sangue inundou o tórax de Anco, banhando seus órgãos no escarlate líquido. Nos aproximamos outra vez e nos entreolhamos. Os olhos dele ficaram brancos... muito mais brancos que antes, quando ele usou das outras vezes. Agora era branco brilhante, e um pontinho preto, como uma pequena pupila, surgiu no meio, e se ajustou à luz do ambiente. Mickael tocou a ponta do indicador no sangue e aproximou dos olhos.

Mickael: — Uau... hemoglobinas intactas, novas... esse sangue é puro e jovem. No entanto o plasma é pouco, muito pouco. A medula óssea está produzindo mais sangue novo, e eu não faço ideia de como.  — seus olhos voltaram ao normal, e ele deu a volta na mesa correndo, ficando ao meu lado. — Tome cuidado, não deixe que o sangue dele entre em contato com sua pele. Estamos usando luvas e proteção porque há sulfeto mercúrico no sangue dele, e o cinábrio tbém estava nos pés e em alguns ferimentos, e isso é bem tóxico. — assenti. Depois de minutos, que mais pareceram horas, aturando aquela pressão no meu cérebro, eu sentia como se eu já estivesse me acostumando com a dor insuportável que eu sentia. Estava bem mais fraco agora.

Eu: — Eu acho que eu já sei. Minha teoria é que ele ainda está vivo. — passei o estômago rasgado para ele, que pôs no lugar correto, e tentou suturar o mais rápido possível no lugar.

Mickael: — Mas não há atividade cerebral e nem cardíaca.

Nos assustamos ao escutar a porta abrir com um estrondo, e bater com outro estrondo. Nos viramos rápido e vimos o Gui entrando tapando os ouvidos. Ele veio até nós e... suas narinas e ambos os ouvidos começaram a sangrar.

Guilherme: — Anco ainda está vivo! — se apoiou na mesa auxiliar e quase caiu para a direita por causa da vertigem. — O cérebro dele está pulsando energia, e eu detecto a estática, mesmo que mínima.

Ao olhar bem pra ele, vi o sofrimento em seu olhar. Ele estava sentindo muita dor, e seu rosto... ele limpou o sangue com a roupa especial que vestia, mas acabou espalhando por seu rosto. Me causou ainda mais dor ao ver aquele rosto cheio de sangue.

Eu: — Guilherme, saia daqui...

Guilherme: — Não, eu não vou.

Eu: — Gui... — ambas as narinas soltaram mais sangue, mas ele limpou de novo.

Guilherme: — Eu não vou e ponto. — uma onda forte se desprendeu do cadáver e nos atingiu com força. Gui gemeu de dor e esbarrou na mesa auxiliar. Eu me segurei na mesa onde Anco estava e tentei não cair pra trás. Me mantive firme, apesar de estar me sentindo destroçado.

Mickael: — Se afastem!!! O cérebro de vocês está sofrendo!

Não o escutamos. Gui caiu de joelhos, mas rapidamente se levantou e tomou sua posição... pôs as mãos ao redor da cabeça de Anco e pude ver pequenas faíscas estalarem das pontas de seus dedos. Na hora a potência daquela confusão telepática caiu pela metade. Gui rangeu os dentes e gemeu alto. O sangue desceu de seu nariz como uma torrente carmesim, me preocupando bastante. Aquele sangue todo caía em suas roupas e as deixava encharcadas.

Recolocamos todos os órgãos no lugar, e quando Mickael iria colocar o rim seco, ele parou por um momento e verificou as artérias e veias renais. Seus olhos voltaram a ficar brancos. Me aproximei e olhei com atenção pro retroperitônio. Havia bubões espalhados pela artéria renal esquerda, e mais bubões pela direita. As veias renais estavam com hematomas e mais bubões.

Mickael: — Não é possível... — disse baixo. Ele juntou os dedos e... simplesmente apertou os bubões como se estivesse estourando uma espinha, mas... aquilo cresceu como um apendice, se esticando e tomando a coloração azulada da artéria. Nos assustamos e ficamos calados e parados. Aquilo se moveu e Mickael soltou com o susto. A artéria se conectou com as veias renais, e várias outras linhas se formaram ali, coisa que eu nem me lembro de ter lido sobre. Formaram um hilo novo e simplesmente parou, apenas se conectaram como fiações. De repente o coração de Anco deu uma batida profunda, que fez um barulho esquisito e nos assustou. Mickael deu um salto pra trás e ficou paralisado. Eu continuei observando. As veias renais cresceram e... se conectaram no hilo renal e aquilo parecia... parecia uma semente crescendo... olhei os bubões se mutando e paralisei.

Eu: — Dr. Mickael... é possível um corpo recriar órgãos retirados?

Mickarl: — É impossível, eu nunca vi isso em humanos.

Eu: — Ele não é humano... — apontei para o retroperitônio e ele olhou. Na hora ficou ainda mais sério. Eu não sei se estou ficando maluco ou não, mas... os rins do cadáver estavam crescendo de novo, se reconstruindo.

Peguei o resto dos órgãos, Mickael e eu recolocamos no lugar que cada um deveria estar, e ao tocar os intestinos, eles começaram a se mover como serpentes molengas e escorregadias, se ajeitando lentamente no abdômen aberto.

Mickael: — Você realmente acha que os órgãos estão renascendo???

Eu: — Você não?!

Guilherme: — Isso deveria ser impossível... — disse baixo, quase sem forças.

Depois de tudo o que já vimos, eu acredito que nada mais é impossível nesse mundo maluco.

Eu: — Por que o corpo estaria produzindo e distribuindo sangue novo então??? Deveria ser impossível com o corpo e o cérebro mortos! Então me contem! Deem outra explicação!

Mickael olhou pra cima, para a vidraça da plataforma onde os outros assistiam toda aquela loucura que estávamos passando. Marcus, Nathalie e Thay estavam lá também, observando de pé e bem preocupados e curiosos. Me curvei para ver melhor o crescimento das veias, o pulsar das artérias, e a movimentação dos intestinos, e... gotas do meu sangue pingaram num aglomerado de bubões nas veias renais e no sangue que cobria o intestino grosso. Mais bubões se formaram no intestino grosso, e algo crescia ali. O sangue dele começou a borbulhar, como se estivesse fervendo, e isso me assustou ainda mais. Me afastei. O sangue dele reagiu com o meu.

Levei um susto quando Marcus apareceu ao meu lado com um pano. Sem esperar que eu processasse tudo, ele limpou minha boca, meu nariz, meu queixo e pescoço, e até meus ouvidos, molhados por sangue fresco. Em seguida fez o mesmo com o Gui. A interferência não cessou. Ficou mais forte, a ponto de o Gui ter que parar o que estava fazendo e se afastar também. O corpo sem vida de Anco fez alguns sons estranhos... ficamos longe e não tocamos mais nele. As costelas repentinamente murcharam, e seu tórax diminuiu de tamanho, ficando achatado e deformado.

Eu: — Precisamos fechá-lo... — corri até a mesa, peguei o equipamento de sutura e rapidamente fechei as camadas do abdômen do cadáver. Comecei a costurar sem mesmo saber o que eu estava fazendo. Só queria evitar que do nada os órgãos saltassem e se espalhassem pelo chão. Costurei de qualquer forma, até que uma rajada telecinética extremamente poderosa se desprendeu da cabeça dele. Empurrou Marcus, Guilherme e Mickael contra o chão, como se quisesse esmagá-los, mas não teve efeito contra mim. Senti a onda poderosa passando por minha pele, mas não me afetou fisicamente... entretanto meus olhos foram tapados. Tudo ficou escuro, apesar de eu ainda sentir minhas mãos abaixo das luvas tocando o sangue quente e o corpo morno.

Era pura escuridão... mas em questão de segundos, pontos brilhantes surgiram, oscilando como... estrelas. A escuridão ganhou cores, formas e... eu percebi que eu estava flutuando pelo espaço, diante de bilhares de estrelas e planetas. Chacoalhei minha cabeça, tentando retornar para a sala, mas não funcionou. Aquela interferência nos cegou completamente. Eu não tinha mais nenhuma noção de espaço. Ao olhar para frente, havia uma nebulosa colossal em forma desconhecida. Eram gases que refletiam luzes de várias cores, principalmente vermelhas, roxas e azuis. Achei que era apenas uma nebulosa de gases e estrelas, mas aquilo se moveu como fumaça colorida e tomou uma forma estranha. Um amontoado de gases se ergueu em uma esfera com nove orbes luminosos... Quatro tentáculos como mãos sem dedos se levantaram acima de mim... uma explosão de luz formou duas hastes atrás de todo aquele show de luzes, como se fossem duas asas luminosas, e... aquilo também tinha cabelo, como fumaça nebulosa se erguendo para o infinito. Toda a névoa se moveu rapidamente, e nem parecia ter bilhares de quilômetros quadrados, me atingiu com uma luz alaranjada poderosa e jogou um dos tentáculos contra mim, acertando-me em cheio. Na hora senti a forte pressão e o cheiro de enxofre. Achei que iria desmaiar, mas minha visão voltou. Me afastei com um pulo. Anco começou a convulsionar, a tremer assustadoramente, e seu corpo a esse ponto estava mole, tão mole que seus músculos balançavam como uma gelatina de carne. Do nada protuberâncias surgiram na pele do tórax dele, e relevos começaram a aparecer. A pele frágil foi perfurada por ossos pontudos manchados com sangue líquido, que se curvaram sobre seu dorso. Pareciam costelas novinhas em folha, e pontudas. A pele perfurada se desmanchou e ebuliu junto com o sangue, que de líquido estava começando a ficar mais viscoso à medida que fervia dentro daquele corpo. Todos ficamos parados boquiabertos, sem saber o que fazer. Me afastei mais e assisti uma camada grossa de pele e músculo nascer e cobrir aquelas costelas recém-nascidas... se expandindo das laterais até o meio do peitoral, liso e sem cicatriz alguma. De repente tudo parou...

O corpo parou de se mover. A interferência telepática também parou, e na hora senti o alívio de poder entender perfeitamente meus próprios pensamentos. Tudo ficou em silêncio. Mickael deu um passo à frente com seus olhos brancos analisando tudo naquela mesa de Necrópsia. Ele sorriu de canto e tirou as luvas manchadas de sangue... colocou as mãos na testa e suspirou.

Mickael: — Ele está morto... tudo inativo, mas todos... todos os órgãos estão inteiros... e-estão... regenerados, ligados, perfeitos como novos...

Marcus: — C-como... Mickael... — se aproximou e olhou Anco deitado. Gui e eu nos aproximamos também. Anco estava... inteiro. Sem ao menos a cicatriz da sutura que eu fiz. Se isso é um poder à parte da família do Anco, está de parabéns. O melhor efeito visual até agora, superando Thor e seu show de raios.

Mickael: — Os rins... — apontou para a parte inferior do abdômen. — os rins estão intactos... todos eles. Os brônquios cresceram como novos, e as costelas estão blindadas como ossos jovens e saudáveis. MAS ELE TÁ MORTO!!!

Tá, já deu. Tirei minhas luvas e as coloquei na mesa. Tirei toda a roupa e larguei no chão mesmo. Só... só saí da sala, e fui me esterilizar no quartinho ali perto. Deixei que Doxja lançasse um vapor denso em mim, lavei as mãos e saí. Não falei mais nada, só voltei pro salão. Logo todos voltaram pro salão em silêncio. Ninguém conseguia acreditar nos próprios olhos. Aquilo que acabou de acontecer não podia ser realidade. Nós presenciamos o... o impossível!

Mickael: — E-eu... nunca vi algo parecido. Nem em um Diract.  — o primeiro a soltar sua voz calma, que soou como uma brisa em meus ouvidos. Mesmo no momento tenso, ele parece super tranquilo. Eu amo escutar a voz dele. Às vezes soa sensual, às vezes fofo, mas sempre reconfortante. Dá pra sentir que ele não possui mais a habilidade de se estressar ou perder a paciência com algo. Deve ter passado por tanta coisa... aquela voz calma também parecia um pouco dolorida às vezes.

Guilherme: — Nem com seus pacientes não-humanos?

Mickael: — Não. Eu já vi desenvolverem novos órgão, regeneração celular avançada, reestruturar a ossada, mas... nunca dessa forma assustadora. Isso é inédito.

Guilherme: — Então... vocês viram aquilo? — questionou olhando para nós, que estávamos na Necrópsia. Gui riu, mas notei que estava bem nervoso. Coçou a nuca diversas vezes em menos de um minuto. Ele está desconfortável. Todos assentimos e continuamos calados.

Sílvia: — Vocês viram algo que nós não vimos?

Nathalie: — O que aconteceu lá dentro, gente?

Marcus: — É uma ilusão formada pela interferência telepática. As nossas ondas cerebrais se desordenaram e simplesmente alterou nossos sentidos, induzindo a visão a uma forma... sei lá, uma visão do nosso subconsciente, talvez.

Eu: — Mas todos vimos a mesma coisa. Eu tenho certeza disso. — abaixaram a cabeça e encararam o chão.

Marcus: — Talvez por sermos cetorianos, nossas atividades telepáticas já são conectadas, então isso dividiu a visão. Ao invés de escutarmos a mente uns dos outros, o sentido da audição, usamos a visão ao invés. Não sei, nada mais está fazendo sentido, mas me recuso a focar nessa parte. Vocês viram que o corpo dele está inteiro?! Como essa porra aconteceu?! — gritou, e o resto continuou calado.

Então... estamos todos conectados por sermos cetorianos, uma raça psíquica? É, faz algum sentido. Mas algo além disso está bem óbvio... e parece que apenas eu notei isso. Bom, eu e o Gui. Ao me recordar de cada cena, ri. Não consegui segurar e ri. Apenas ri.

Eu: — Vocês são tão burros. — continuei rindo. — Não perceberam que ele só reagiu quando tocamos nele. De alguma forma ele sentiu, e está tentando se recuperar mesmo depois de morto. O espírito dele ainda está aqui. Anco está vivo. Ele está vivo, cara! Ele está vivíssimo, e está tentando uma forma de recuperar o próprio corpo de qualquer jeito! — todos me encaravam incrédulos, mas eu sabia do que eu estava falando. É o ponto mais correto na minha visão. Meu tom de voz parou de sair do riso e veio com mais seriedade. — Foi ele que iniciou a ilusão, que nos conectou, e nos fez lembrar que somos da mesma espécie, e estamos juntos aqui, mesmo que alguns tenham se conectado recentemente, mas ainda assim é um vínculo. Ele encontrou uma forma de se comunicar conosco, mas vocês não estão querendo enxergar isso. Aquela imagem daquela coisa pode não significar nada, mas só o fato de termos aquela visão, já explica esse ponto. O mais importante é... Anco está fazendo de tudo pra voltar, e nada vai pará-lo.

Silêncio. Parei um pouquinho para refletir também. Olhei para cima e para baixo. Marcus queria cremá-lo e lançar suas cinzas numa viagem pelo espaço. Mas não. Isso não vai mais acontecer. Eu não vou permitir que mais ninguém toque naquele corpo.

Eu: —  Ninguém vai enterrá-lo. Nós não vamos nos despedir de outro amigo, e então nós vamos esperar! — falei entre os dentes, como se estivesse ordenando mesmo, e ainda bati a mão na mesa de cristal. Queria deixar bem claro o que eu estava falando. — Não venham com papo de Post Mortem, não haverá decomposição tão cedo e sabemos o porquê. O corpo dele está se renovando, e de alguma forma milagrosa isso vai continuar. Nós vamos esperar, e ninguém mais toca naquele corpo. Fim de papo.

Me levantei e me retirei da mesa. Queria dar mais uma olhada em Anco, mas esse dia já foi coisa demais pra minha cabeça, então saí da câmara e voltei pro meu quarto pra tomar um banho e me livrar da roupa ensanguentada. Após o banho, me deitei na minha cama e respirei fundo várias vezes, tentando afastar os pensamentos e as imagens do meu amigo aberto enquanto eu segurava seus órgãos... isso é pavoroso de pensar.

Ah, eu preciso sair. Eu preciso... sei lá. Talvez eu vá dar mais uma volta pelo Atlântico. Quem sabe aqueles monstros marinhos estejam brigando ainda. Vai ser legal assistir.

Tomei um banho, troquei de roupas e saí. O povo ainda estava na câmara, e devem ficar lá por um bom tempo discutindo minha grosseria e o evento do Anco. Assim que saí de casa, suspirei ao sentir a brisa do dia. O sol estava quente e muito brilhante ainda, e percebi que o dia estava bem quente, e olha que são seis da tarde. Está prestes a escurecer. Os humanos devem estar sofrendo com o calor.

Andei alguns metros, e na próxima rua eu vi algo... hum... interessante. Numa das casas arduamente padronizadas, bem estilo “idosos com TOC”, um menino regava as plantas calmamente. Estava sem camisa, e suando mais do que a mangueira, que jorrava água. Reconheci de cara, afinal é difícil esquecer alguém com traços tão marcantes. Não iria falar diretamente com ele, iria passar direto e dar apenas um cumprimento, afinal nos conhecemos antes e seria meio arrogante da minha parte não cumprimentá-lo. Assim que passei por seu portão baixo, ele notou minha presença, me olhando calmamente. Um sorriso de canto surgiu e ele virou o corpo e a mangueira na minha direção. A água veio toda pra cima de mim, molhando minhas roupas, meu rosto e meu cabelo.

Kenshi: — Waa!! — arregalou os olhos e se assustou, abaixando a mangueira rapidamente. Não fiquei com raiva. Achei engraçado. Limpei a água dos meus cílios e ri. — Hihi... Konnichiwa...   [Hihi... Olá...]— desligou a mangueira e acenou calmamente, com um sorriso fofo e as sobrancelhas arqueadas. Pronto, meu dia acabou de melhorar, apesar de eu estar bem molhado.

Eu: — Olá... pra ti também. — ele soltou a mangueira e se aproximou. Automaticamente meus olhos desceram para as gotas de suor descendo por seu pescoço... e por sua mandíbula bem arqueada. Ele passou a mão direita pelo cabelo e o colocou para trás. Abriu o portão e queria me ajudar a secar meu rosto, mas aparentemente não queria me tocar. Ele tentou, mas desistiu algumas vezes. Acho que estava esperando minha permissão.

Kenshi: — Me perdoe, cara! De verdade! Foi sem querer, eu... eu... eu não sei o que deu em mim... me desculpe... — ri.

Eu: — Tá tudo bem. Está um pouco calor mesmo, não se preocupe. — ele colocou as mãos na cintura e... fui obrigado a olhá-lo de corpo inteiro. Vestia apenas uma bermuda praiana, e estava descalço. Vi a curva da parte inferior do abdômen levando para dentro da bermuda... o corpo suado brilhando... o cheiro incendiante que ele exalava... — Então é assim que você chama uma pessoa pra sair? — tentei aumentar minha temperatura corporal, só pra me secar mais rápido. Ele coçou o topo da cabeça e corou, sorrindo de canto.

Kenshi: — É... não foi o que eu tinha em mente. Não fique bravo comigo, por favor. Eu ainda quero te beijar. — ri e revirei os olhos.

Eu: — Não vou ficar bravo, Kenshi. Relaxa. — me escorei no muro e mordi os lábios. Ele notou meu interesse. E sim, eu gostei dele. Ele é bem interessante. É super fofo e... agora eu vejo que é um puta gostoso.

Kenshi: — Ah... é... e-eu... me perdoe por não estar apresentável. Tá calor e eu estava regando as plantas. Não esperava... isso... — seus olhinhos puxadinhos estavam ainda menores, evitando a luz solar. Nem sei como ele conseguia me enxergar, pois parecia estar com os olhos fechados. Mas achei fofo. Cada expressão dele é bem fofa.

Eu: — De boa. — me virei de costas pra ele e segui meu caminho. Andei alguns metros e... não sei o motivo desse garoto parecer tão atraente. Tipo, não é a beleza, nem a vibe estrangeira, nem mesmo o modo envolvente com o qual ele fala. Mas a energia que ele exala, o ambiente dele, aquele sorriso. Ele parece ser uma ótima pessoa. Me virei pra trás, mas continuei andando de costas. — Aliás, eu estou solteiro! Você deveria me chamar pra sair!

Ele demorou um pouco pra captar, mas assim que seu cérebro interpretou a mensagem, abriu um sorriso de surpresa. Olhou ao redor, mas a rua estava vazia. Ele tocou o próprio peito, apontando para si, e eu assenti. Será que ele achou mesmo que eu estivesse falando com outra pessoa? Fala sério.

Kenshi: — Você quer sair comigo pra... sei lá! Tomar uns refrigerantes?!— gritou de volta. Eu ri e ergui os polegares.

Eu: — Eu adoraria! — me virei de costas de novo e continuei meu caminho. O caminho que eu nem sabia pra onde eu estava indo.

Andei sem rumo, apenas segui em frente pela calçada, e acabei indo parar numa das rotas comerciais da cidade, e não é o centro. Se eu já vim aqui, não me lembro bem, mas já devo ter passado de carro com minha mãe algumas vezes por aqui. Continuei andando e percebi que as pessoas me olhavam bastante. Não sei o que tem em mim, mas atraía bastante atenção. Eu estava vestido casualmente, da mesma forma que sempre me visto. Uma blusa branca e uma bermuda cinza. Nada tão extravagante. Talvez seja minha aparência astriana. Descobri que eu tenho as orelhas um pouquinho pontudas, e o formato do meu rosto não é muito comum no planeta, nem a cor dos meus olhos. Talvez o conjunto chame mesmo atenção. Mas enfim, continuei andando. Esperava alguma ação, mas não encontrei nada. Entrei numa loja de roupas e fiquei olhando.

— Bom dia, Senhor. Quer alguma ajuda? — um vendedor se aproximou. Estava de calça cumprida preta, e blusa de uniforme também preta. Era bem alto, um pouquinho maior que eu, e isso chamou minha atenção. Eu tenho crescido muito ultimamente, e ficou um pouco difícil de achar pessoas da minha altura, ainda mais maiores que eu. olhei pra ele e sorri.

Eu: — Não, não, só estou olhando, obrigado.

— Sério? — ele coçou atrás da cabeça e sorriu. Tinha um sorriso bonito, mas eu sou suspeito em falar, já que amo todos os sorrisos e o sorriso de todos. Mas voltei a olhar as roupas. Ele se afastou e voltou para o grupo onde alguns dos funcionários conversavam.

Eu estava cagando pro que eles falavam, ou se o assunto sou eu ou não, eu queria só olhar as roupas. Vou comprar? Óbvio que não. Mas vai que encontro algo legal que eu não vou comprar.

— Cara, quer saber... eu queria pedir teu número. Sabe... — ignorei por hora. — Posso te ajudar a encontrar seu tamanho, se quiser. Eu também tenho problemas pra achar uma blusa do meu tamanho, que não fique muito grande e nem muito pequena.

Eu: — Não, tô bem. Não tenho intenção de comprar. Só estou ocupando minha cabeça.

— Tudo bem, beleza... vou atender os outros, mas... só por dizer mesmo, eu saio às oito. Posso te ajudar a ocupar a cabeça também, bro.

Hum... sua voz grossa arrepiou minha derme, e me fez sorrir de canto. Larguei as roupas e me virei pra ele. Me aproximei e ficamos cara-a-cara, afinal somos praticamente do mesmo tamanho. Fiz um biquinho e em seguida mordi o lábio inferior. Ele tinha uma boca bonita, mas... hoje já vi caras mais interessantes. Esse é grande, é robusto, é... bruto, aparentemente tem mãos grande e pesadas, o que esquentou as coisas, mas... não é o suficiente. Depois de algum tempo eu percebi que sair com caras com cabeça fraca só dá ruim.

Eu: — Eu adoraria. É uma pena que às oito eu não estarei aqui. — sorri e passei por ele, deslizando a mão por seu peito direito e por seu ombro direito. Passei pelo grupinho de funcionários sorrindo e, só pra brincar um pouco, mordi os lábios para todos, dois garotos e três meninas. Eles sorriram de volta. Um dos garotos estava com uma gravatinha de festa cheia de lantejoulas. Agarrei-a e deslizei meus dedos por ela, puxando e trazendo o pescoço dele até mim. Soltei a gravatinha enquanto sorria e me afastei, todos estavam com cara de bobos viajando e olhando pra mim. Eu amo provocar os humanos. Isso é tão divertido. Fez meu dia.

Fui para outro setor da loja, onde havia roupas para meninos mais novos. Pensei no Cássio e no Théo, só que eu ainda não sei bem o estilo do Théo. Nathalie e Thay saberiam me explicar melhor... ou o Joca, que é irmão dele. Já Cássio ama qualquer coisa que não estrague a pose ousada dele. Eu estava concentrado, até que senti o cheiro de hormônios humanos masculinos se aproximando. Hormônios explosivos, o que indica excitação em... vários sentidos. Esse cheiro não estava aqui antes.

— Beleza, eu tô gamadão. Passa teu número aí, cara. — riu e se escorou na arara de roupas à minha frente. — Eu sou legal, vamos conversar pacas e nos dar muito bem.

Eu: — Já tenho encontro marcado com alguém. Não pretendo marcar outro.

— Quando me conhecer melhor, não vai haver outro, eu te prometo. — ri e me virei pra ele. Cruzei os braços. Ele inflou o peito e sorriu de uma forma bem maliciosa. Sorriso sensual, eu gosto. Mas ainda assim não é o suficiente.

Eu: — Eu não sou trouxa. Jamais trocaria momentos de uma vida por um macho de uma noite. O seu cheiro é delicioso, mas você não é tudo isso. Se manca. — dei dois tapinhas em seu peito.

— Ah, é... tu é lindo pra caralho, por isso se acha. Não curte homem pobre? — ri, parei e me virei pra ele de novo. — É playboy metidinho, né. Fazer o que, não tenho chances. — Se virou.

Eu: — Quem dera fosse isso. Se fosse, o meu trabalho seria apenas concordar e deixar você vazar. Mas não. Você quer apenas sexo. Eu não quero. Você só me viu hoje e nem sabe se eu sou um maníaco ou não. Você só pensa em si, no seu prazer, e eu não gosto de homem indeciso com o que é capaz de sentir. Se acha que me insulta dessa forma, se engana. Você seria apenas um pedaço de carne.

— Que seja. O pedaço de carne vem acompanhado de um salame grandão.

Aaaah, pelos deuses. É só mais um macho escroto irritante falocêntrico que eu preciso me livrar. É só gostoso mesmo, porque... cara, que imbecil. Puro acéfalo.

— Topa ou não topa? Sentou, não vai querer largar mais.

Eu: — Vai se foder, cara. Contrate um garoto de programa, pelo amor dos deuses! Vá trabalhar, antes que eu faça você ser demitido. — Me afastei dele e resolvi sair da loja. Passei pelo grupinho que ria e fechei a cara. Tava quase saindo, quando uma moça na entrada me parou.

— Cartão da loja, moço! Comprar com até sessenta porcento de desconto, e limite de...

Eu: — Não. Enfie no rabo daquele seu amigo macho irritante. O altão cheio de si. Chato, invasivo... mas gostoso. — suspirei. — Espero não vê-lo outra vez.

— Sério? Nossa, que cuzão... mas e o cartão da loja? Vamos fazer hoje? Sessenta porcento de...

Eu: — Por Abooh... — saí da loja.

ABOOH : Amores Sobre-Humanos Where stories live. Discover now