Saint Luna, 21 de março de 1991
Quinta-feira - 06:12 A.M.
Acordei quando Ellie bateu na porta. Sabia que hoje eu não iria para a escola, e sim para nosso primeiro Sabá. Jesse e Seline também deveriam estar prontas, mas o nervosismo ocupava minha mente.
Há dois dias, Jesse e eu encontramos o portal do inferno. Era bem estranho a separação de dois mundos totalmente diferentes, sendo que ambos são reais; ambos estão presentes bem na nossa frente.
Fui atacada por um cão gigante, que ao meu ver, poderia ser um tipo de guardião do lugar. Jesse contou que uma garota misteriosa havia nos salvado, mas não sabia quem era. Seline também contou que havia ido para a floresta e acabou se esbarrando com um demônio do medo, e que um garoto havia ajudado ela.
Criamos a teoria de que esse demônio poderia ter fugido do portal, e que as duas pessoas que nos ajudaram secretamente pudessem ser bruxos que fazem parte do coven e vieram para o Ostará.
— Acho melhor você comer alguma coisa antes de ir. — Tia Ellie falou enquanto eu me sentava na mesa.
Como o Sabá ocorria de manhã, significava que não iríamos à escola hoje. Fiquei um pouco mal por ser a última semana de aulas antes das provas e eu ter que faltar, mas por outro lado fiquei feliz por dar um passo a mais na magia Wicca.
— Onde exatamente acontece esse ritual? — Perguntei enquanto comia, observando tia Ellie encostada na entrada da cozinha.
— Todos os Sabás acontecem na floresta. Você vai entender melhor quando for.
Terminei de comer e subi as escadas, caminhando até meu quarto e trocando de roupa. Quando desci, Seline e Jesse me esperavam na sala, pelo visto, já preparadas para o ritual.
— O que vocês acham que vai acontecer? Será que vai ter alguma coisa para comer?
Seline fazia milhares de perguntas enquanto caminhamos na direção da floresta Sweet. Eu não fazia ideia de em qual parte o Ostará iria acontecer, então pretendia apenas seguir a intuição, totalmente sem rumo.
— Eu não sei, Seline. — Jesse respondia toda vez que Seline perguntava algo aleatório.
— Vocês acham que é possível encontrarmos a garota que nos ajudou no cemitério? Ou até mesmo o garoto que ajudou a Seline. — Questionei pensativa, quando finalmente entramos dentro da floresta.
— Eu acredito que sejam bruxos. Quando o garoto cego me ajudou, o demônio falou uma coisa estranha. — Comentou Seline tentando se recordar. — Ele usou o termo filho da noite. Será que ele é um tipo de filho de Hécate?
— Hécate não é deusa da noite. — Afirmei olhando para ela. — Mas não significa que esse termo seja em sentido literal.
Seline deu de ombros, passando por algumas árvores gigantes. O dia estava bem diferente dos outros. O sol da manhã brilhava de forma aconchegante, as árvores pareciam mais vivas e os pássaros cantavam em perfeita sintonia.
Durante nossa caminhada, o clima começou a mudar. Não do tipo o tempo, mas as sensações e os pequenos detalhes da natureza. Os pássaros que antes cantavam, agora estavam todos em silêncio.
— É impressão minha ou tem alguma coisa acontecendo? — Jesse perguntou diminuindo os passos aos poucos.
Uma ventania forte surgiu aos poucos, carregando as folhas jogadas no chão para longe. Era o segundo sinal de que havia alguma coisa muito ruim acontecendo, e ficaria pior ainda.
— Jesse, Jesse. — Disse uma voz grossa vindo por trás de nós. — Sabe que dia é hoje? Tempo esgotado para uma resposta.
Quando nos demos conta do que estava acontecendo, olhamos Lúcifer caminhando aos poucos na nossa direção.
— Você de novo? — Perguntou Jesse.
— Eu te dei o tempo suficiente para você decidir sobre nosso acordo. E então, tem uma resposta?
Logo atrás dele, havia outra pessoa encostado na árvore, acompanhando todo o diálogo. Stephen estava acompanhando Lúcifer, ou como preferiu nomear-se humanamente: Leifhel.
— Minha resposta é que não vamos nos juntar no seu time. — Respondeu pacificamente. — Nem que você tente nos matar. Somos bruxas tríades e servimos somente à deusa tríplice, você querendo ou não.
Ele suspirou como uma falsa decepção, e olhou ao redor. Me aproximei de Jesse e Seline para caso algo desse errado, ficaríamos juntas e enfrentaríamos juntas.
— Era uma pena, vocês me seriam úteis. — Lamentou e olhou para Stephen. — Descarte-as.
Arregalei os olhos com seu simples pedido, e fiquei não só assustada, mas também com raiva. Ele queria impedir que fôssemos ao ritual, por isso seu prazo foi até hoje.
— Por que eu? — Stephen perguntou se afastando da árvore.
— Porque você me serve, esqueceu? Ou preciso te lembrar disso? — Lúcifer falou frisando a palavra "lembrar", como se já tivessem tido aquela conversa antes.
Stephen estremeceu um pouco, mas não contrariou Lúcifer. Quando o homem das trevas se virou e se afastou, Stephen fechou os olhos e começou a invocar alguma coisa bem grande.
— O que acham de sairmos correndo? — Seline sugeriu dando alguns passos para trás. — Tipo, AGORA?
— Acho melhor ficarmos e impedirmos seja lá o que ele for invocar. — Falei firme diante da situação. — De uma forma ou de outra, ele vai invocar algo, talvez outro demônio. Se sairmos daqui, essa coisa poderá ir para a cidade e causar um caos como da última vez.
— Alice tem razão. Vamos ficar e impedir os planos de Lúcifer. — Jesse concordou confiante, e Seline revirou os olhos.
— Tudo bem, mas não trouxemos o grimório de novo. Como vamos usar feitiços se nem ao menos sabemos como usá-los? — Questionou.
— Seline, hoje é o dia de provar que nem tudo depende de poderes. — Afirmei.
Um grito alto e agudo surgiu do chão, como se ele tivesse virado uma gosma escura. Um ser magro e com asas de pele saía de dentro da gosma, com os olhos vermelhos e chifres na cabeça. Realmente era um demônio, só que dessa vez mais feio que os outros.
Lúcifer e Stephen haviam ido embora, deixando aquela coisa gosmenta para determos. Queria apenas que desse tempo de chegarmos ao Sabá, então teríamos que vencê-lo rapidamente.
— Eu tenho uma ideia. — Falei atraindo a atenção das meninas, e as puxei para um arbusto grande para nos esconder do demônio. — Vamos criar ou invocar algo na mesma proporção desse demônio, para que ele possa lutar no nosso lugar enquanto continuamos o caminho para o Sabá.
— Que tipo de coisa? — Seline questionou.
— Elementais. Como estamos no meio da floresta, pensei em elementais da terra, típicos do tipo da magia que usamos. — Falei apreensiva, enquanto ouvia o demônio destruir algumas árvores. — Vamos tentar ser rápidas.
Demos as mãos e fechamos os olhos, tentando sentir a energia da natureza que estava presente no lugar. Não saberia se aquela ideia daria certo, pois demônios não estão inclusos em religiões pagãs. Eram mundos diferentes, poderes diferentes.
— Pelo amor da deusa, que isso dê certo! — Seline suplicou antes de começarmos.
— Elementais da terra, seres divinos da natureza, guardiões das energias naturais, os invocamos em nome da atual tríade da deusa tríplice. Ajudem-nos em sua forma física, protejam seu lar e acabem com os intrusos!
A voz de Jesse soou alta, o suficiente para atrair a atenção do demônio. Ele voou em nossa direção, mas havia uma barreira invisível que nos protegeu e o jogou para longe.
Do chão, seres pequenos e brilhantes começaram a sair. Eram como gnomos e duendes, auras saíam das árvores em forma de ninfas e espíritos antigos guardiões da natureza. Era uma cena esplêndida, digna de um filme de fantasia.
Não acreditei quando vi, e fiquei de boca aberta. Aquelas coisas realmente estavam ali? Em um mundo mágico de bruxas e demônios, com certeza seres mágicos de todos os tipos existiam.
— Vamos sair daqui enquanto podemos. — Pedi e elas concordaram na mesma hora.
Corremos para fora daquela parte, quando percebemos que os seres elementais detiam o demônio aos poucos. Pela primeira vez, não tivemos que nos enfraquecer por enfrentar algum ser maior. Usamos a saída mais fácil, mas acredito que ela não seria usada novamente.
— Meninas, acho que encontramos.
Jesse, que estava mais a frente, empurrou algumas plantas para o lado, dando mais visibilidade ao lugar. Era um espaço livre e sem muitas árvores, porém haviam bastante flores e árvores maiores ao redor. Quando nos aproximamos, vi um altar enfeitado com folhas, símbolos parecidos com os do grimório e a figura de um coelho.
— Finalmente chegaram, achei que não viessem mais!
Uma voz totalmente familiar falou, aproximando-se aos poucos. Aylen estava ali, vestindo uma roupa branca com detalhes verdes claros. Seu cabelo estava solto e sua expressão leve e relaxada.
— Aylen? O que faz aqui? — Perguntei ao me aproximar da idosa.
— Ah, querida. Eu sou uma bruxa, esqueceu? — Falou com uma risada no final. — Venham, vou lhes mostrar como as coisas acontecem. Lucy e os outros já devem estar chegando para começarmos o ritual.
Aylen nos levou até o altar, no qual eu havia visto mais de longe. De perto eu notei algumas velas verdes, amarelas e brancas. Será que aquelas cores eram simbólicas para o Ostara?
— Por que tem a imagem de um coelho? — Seline perguntou.
— O coelho significa a fertilidade, mas a fertilidade de boas energias, fertilidade da terra. — Explicou. — Faremos um rito de iniciação, e logo iremos à caça aos ovos.
— Caça aos ovos? Achei que a Páscoa fosse só em maio. — Seline comentou ainda confusa com tudo aquilo, tentando se acostumar.
— Os ovos são símbolos principais da Ostará. Ele representa a terra, flores e frutas trazidos pelo coelho. Geralmente os ovos são cozidos e enfeitados com desenhos coloridos feitos de tinta. — Aylen respondia tranquilamente a cada pergunta. — O ritual é feito em homenagem à deusa tríplice e ao deus cornífero, que é o pai da fertilidade, guardião da entrada e do círculo mágico que protege a nossa terra sagrada para o ritual. Vocês, como tríades somente da deusa tríplice, devem ter ouvido pouca coisa sobre Cornífeno.
Quando terminou de falar, Seline começou a rir descontroladamente. Jesse e eu nos olhamos confusas, enquanto Seline se controlava para parar de rir.
— Do que você está rindo? — Perguntei enquanto Seline parava aos poucos.
— É que eu pensei em uma coisa. — Respondeu.
— Que coisa?
— Você não entenderia.
Ainda confusa, ouvi passos e vozes de outras pessoas se aproximando. Quando contei, vi que haviam onze pessoas ali, sem contar com Aylen e Lucy que ainda não havia chegado.
Seline fixou o olhar em um ponto específico, e então assumiu a expressão séria. Quando olhei na direção, vi um garoto com uma bengala parado ao lado de duas irmãs gêmeas idênticas. Aquele era o garoto que ajudou Seline da última vez, eu notei por ela dizer que ele era deficiente visual.
— Vovó?
Voltei da minha distração quando notei uma garota se aproximando de Aylen. Ela tinha a pele parda, os olhos levemente puxados e o cabelo grande e totalmente liso. Um estalo veio na minha mente no exato momento em que percebi que aquela era a garota que ajudou Jesse e eu no cemitério.
— Meninas, essa é minha neta Nantai. Ela é uma bruxa solitária, por isso não fica muito tempo em Saint Luna. — Aylen apresentou e a garota expressou um leve sorriso para gente.
— Olá. — Cumprimentou e olhou para sua avó. — Aquela... — Ela falou com rancor, mas logo parou de falar. — Sua amada Lucy já chegou.
— Ótimo. Lucy é a líder do coven há décadas, desde quando eu era só uma garota! — Falou animada. — Aqui as bruxas são bruxas hereditárias, ou seja, são bruxas de nascença. Vocês são bruxas tríplice, portanto se algo acontecer para que vocês deixem a tríade, não serão bem-vindas ao coven.
— Como a antiga tríade? — Jesse perguntou e Aylen concordou com um movimento positivo com a cabeça.
Todos que estavam ali presentes, fizeram um círculo grande e aberto, e Lucy se aproximou correndo até ficar no círculo.
— Desculpem a demora, acordei tarde. — Falou, e pelo canto dos olhos, vi Nantai revirar os olhos.
— Irmãos e irmãs, sejam bem-vindos novamente ao ritual Ostará. Que o deus a deusa abençoem e fortaleçam nosso Sabá da primavera. Abençoado seja!
— Abençoado seja! — Todos ao redor do círculo falaram em uníssonos.
— Eu inicio esse ritual e convido os elementais e os espíritos de luz a participarem e nos auxiliarem para dar boas vindas à primavera. Que assim seja, e assim será!
Por incrível que pareça, a voz de Lucy transparecia paz e calmaria, diferente dos outros dias que era puro veneno. Ao meu lado esquerdo, Seline segurava uma das minhas mãos, do outro, Jesse.
Depois que Lucy recitou o início do ritual, senti como se houvesse uma barreira que recarregava nossa energia e protegia aquele lugar. Era uma sensação emotiva e sentimental, como se estivesse em casa novamente. No meu verdadeiro lar.
— Agora que já recebemos a nossa bênção, vamos começar a caça aos ovos. Este ano os separei em cor: os ovos verdes são as flores, os vermelhos são as frutas e o amarelo é a fertilidade. Não pensem que isso seja uma competição, apenas um agradecimento ao deus e à deusa. Lembrem-se de que os ovos deverão ser postos no altar com o direito a um pedido de primavera.
Me aliviei ao ver que os rituais não eram sobre sacrificar animais ou recém nascidos e usar o sangue como oferenda. Na verdade, acho que esse tipo de ritual esteja caracterizado mais aos cultos satânicos, e talvez eu esteja errada. O Ostará era mágico e lindo, uma magia pura e limpa que fortalecia nossas emoções.
Juntas, fomos a caça aos ovos como crianças na Páscoa, espalhados pela floresta, dentro de árvores e arbustos. Estava sendo tão incrível que nem ao menos sentimos as horas passarem. Achamos um de cada cor e o colocamos no altar. Fizemos nosso agradecimento e o pedido de primavera, que no caso o meu foi sabedoria para o que iríamos enfrentar.
E o que já estávamos enfrentando.
Espero que tenham gostado. Vote no capítulo se você gostou e comente suas opiniões sobre o livro! Sz