136.

14 4 22
                                    


Dormi muito no sábado, só me levantei perto da uma da tarde. Almocei na cozinha com a senhora Rispoli que me disse que a Claudia tinha saído com as meninas acompanhada da cunhada, a Maria, e que Diego estava nos treinos. Acrescentou que o Massimo também me mandava cumprimentos e corei. O meu recado tinha sido devidamente entregue, com direito a resposta e tudo. No meu reduzido italiano estivemos a falar do seu filho. Era uma mãe orgulhosa, carinhosa, atenciosa, e o Massimo subiu um pouco mais na minha consideração.

À tarde arranjei o tal cantinho na sala. Trouxe os meus livros e os meus cadernos e pus-me a estudar. Era um estudo ingrato. A prova geral de acesso era, tal como o nome indicava, um exame que testava a cultura dos alunos em diversas matérias atuais, pelo que o máximo que podia fazer era rever algumas noções de português, para que as respostas não tivessem erros clamorosos de ortografia e de gramática que prejudicavam a sua classificação, rever a matéria de História e de Geografia, ver notícias sobre atualidades e pouco mais. De resto, essas tinham sido as indicações genéricas da professora São e que pudemos comprovar nos enunciados da prova de anos anteriores. Esforcei-me para parecer ocupada e concentrada nas minhas obrigações académicas. Se, por um lado, deixavam-me em paz para não me perturbarem, por outro provava que falara a sério quando disse que naquele fim-de-semana precisava de recolhimento e que não podia andar em passeios esquisitos. Funcionava como uma etiqueta, uma legenda. Cristina Velez, a estudante aplicada, responsável e honesta.

Diego regressou a casa pelas cinco da tarde, Claudia continuava fora com as meninas. Mais tarde descobri que a Maria vivia ali próximo e que, no fundo, a Claudia não se incomodava demasiado de estar com a cunhada, pois estava na vizinhança e praticamente em casa. Diego vinha agitado e falador. Vi-o a entrar na sala a berrar por Signorini. Coxeava da perna esquerda cujo pé evitava apoiar no chão, pelo que saltitava mais do que andava. Observava-o a mastigar uma pastilha elástica e a enrolar uma pequena madeixa de cabelo no dedo. Ele apercebeu-se da minha presença e endireitou-se imediatamente. Perguntou-me o que fazia ali. Mostrei-lhe o livro que tinha aberto sobre os joelhos. Estudo, respondi-lhe. Signorini apareceu e levou Diego consigo para o ginásio da casa.

Cheia de curiosidade, passados uns bons dez minutos, quis ir espreitá-los. Andei às voltas à procura da divisão certa, abri algumas portas que provavelmente não devia ter aberto, mas não encontrei nada de escabroso e encolhi os ombros, desvalorizando a minha indiscrição.

Encontrei, finalmente, o ginásio. Situava-se na cave, um lugar adjacente à garagem onde estavam os Ferraris e os outros carros luxuosos que motivavam tantas críticas à fortuna indecente de Maradona. Estacionei no corredor e entreabri a porta uma nesga, para que não dessem por mim e acabassem por me expulsar. Não saberia explicar aquela opção, achei simplesmente que Diego queria fazer os seus exercícios sem assistência, só na presença do seu preparador físico. A minha intuição estava certa. No ginásio, depois de uma sessão intensa de boxe da qual só captei os momentos finais, Diego, a transpirar profusamente, o rosto muito encarnado e os braços despidos a brilhar do suor, deixou-se cair no tapete verde de ginástica. Agarrou-se ao tornozelo esquerdo a lamentar-se, num uivo, que lhe doía. Signorini esteve a observá-lo sem lhe tocar. Propôs chamar o médico. Diego concordou deitando-se, suspirando alto. Eu fugi dali. Antes escutei-o a dizer, raivoso:

– Amanhã vou jogar! Ouviste, Nando? Amanhã vou jogar nem que seja de muletas! Porra, isto não me vai parar. Não vai.

Acabava de descobrir que Diego estava lesionado. Era novamente o seu tornozelo esquerdo a causar-lhe problemas, o mesmo que tinha partido em tempos, a fratura que regressava periodicamente para assombrá-lo, para condicioná-lo, para pará-lo. Ele recusava-se a obedecer aos clamores do corpo, ao peso das dores, à exigência da falha. Admirei-o sem limites, o seu nível de sacrifício era inspirador, a sua força era sobre-humana, mas também me preocupei.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now