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O telefone tocou.

Estávamos todos na sala a ver um filme de comédia na televisão. Eu e o meu irmão ríamo-nos alto, a minha mãe sorria, levantando os olhos do crochê que fazia, para ver o que tinha motivado as nossas gargalhadas. Ela já tinha deixado de se incomodar com as nossas manifestações de alegria. O seu processo de luto avançava e estava mais conformada com a sua perda. O meu pai lia o jornal e resmungava, porque eu e o meu irmão exagerávamos, o filme não era assim tão engraçado. Sim, eu estava a exagerar e o meu irmão copiava-me e sabia-me bem exagerar sem ter medo de ser castigada.

Então, o telefone tocou. Habitualmente, era eu que atendia, mas estava distraída com o filme e não me apetecia sair do meu lugar confortável do sofá. O meu pai levantou os olhos do jornal, notei-o a ordenar-me, em silêncio, que fosse ver quem era, mantive-me alheada à campainha estridente. Resmungou alto, foi ele até à mesa que ficava no canto oposto ao do seu cadeirão. Atendeu. Disse, sim, ela está, sim. E anunciou:

– É o teu namorado mexicano.

Um arrepio gelou-me o sangue.

– Quem? – gaguejei, a empalidecer.

– O teu namorado mexicano. – O meu pai sentou-se outra vez no cadeirão, abriu o jornal que lhe cobriu a cara.

– Como é que sabes? – soprei.

– Está alguém ao telefone a falar espanhol, só pode ser ele.

– Ele... ele não tem o meu número de...

– É uma chamada internacional, está a ouvir-se mal por causa da distância. Não faças o rapaz esperar. As chamadas internacionais são muito caras. – Voltou-se para a minha mãe. – A conta do telefone tem andado muito alta. Tens de vigiar os telefonemas que se fazem cá em casa.

– Não sei do que falas – desconversou ela e mandou o meu irmão baixar um pouco o volume da televisão para que eu pudesse falar melhor com o rapaz, já que era uma chamada de longe e seria noutra língua. Concluiu, voltando ao crochê: – Além disso, se temos telefone é para ser usado.

O meu pai fungou.

Encostei o auscultador ao ouvido. A minha mão tremia. Pus-me de costas, para que não captassem a conversa. Podiam ouvi-la, mas se não me vissem, não iriam perceber o seu sentido, confiava.

– Estou?...

"Olá, Tina. Sou eu, Diego."

Tive de apoiar um braço na parede para não cair. Era mesmo ele! Era mesmo Diego... como eu temia. Que ousadia a dele, ligar-me para casa a estas horas. Já passava das nove da noite de uma sexta-feira depois de uma semana esgotante de testes, de aulas exigentes, de professores cansados que só queriam fechar mais aquele ano letivo, passar-nos ou chumbar-nos, dar diplomas àqueles que concluíam a escolaridade obrigatória, preparar a fase das matrículas, sonhar com as férias do verão.

"Estou? Estou?... Mas a chamada caiu, ou quê?"

– Não, Di... Não! Ainda estou aqui – ofeguei.

"Ah, está tudo bem contigo? Ouve..."

– Como é que conseguiste o meu número? – perguntei-lhe num sussurro ríspido.

"Foi o teu papá belga."

– O Jean-Marie?

"Sim. Porquê? Há algum problema em ligar-te para casa?"

– Não... quero dizer. Estou na sala...

"Hum... Tens gente a escutar, é isso?"

– Tenho toda a casa... aqui. Mais ou menos. Consigo... consigo manter-me... discreta.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora