89.

20 4 37
                                    


Na sexta-feira de manhã, eu estava mais do que farta de estar em Nápoles. Os dias daquela semana foram compridos, recheados de atividades e de futebol, não me podia queixar de tédio ou de falta de acontecimentos, mas volta e meia dava por mim a pensar na minha casa, na segurança do meu quarto, nas minhas coisas.

Já antes, no aniversário de Diego do ano passado, tinha sentido aquele desamparo. Saudades do lugar onde pertencia, de facto. Estava a ser bem acolhida, dentro dos padrões de acolhimento do argentino quando Claudia não se encontrava, mas não conseguia evitar uma impressão de solidão envenenada que tinha um sabor demasiado doce.

Como não podia mudar o estado das coisas, o bilhete de avião que Cóppola me dera indicava o sábado, dia doze de novembro, como sendo a data do meu regresso a Portugal, ocupei-me numa visita demorada ao museu arqueológico de Nápoles, que prolonguei de propósito até ao seu fecho.

Rino acompanhou-me e voltou a revelar uma paciência servil desconcertante. Seguiu-me sem um protesto, ajudou-me com as despesas, suportou as minhas demoras contemplativas, aturou as minhas dissertações sobre estátuas, mosaicos, inscrições. Hesitou em dar-me autorização para entrar no chamado gabinete secreto, uma ala do museu onde se exibia o acervo recuperado em Pompeia com características eróticas, que incluía amuletos fálicos, pinturas com cenas explícitas de sexo e figuras lascivas. Informei-o de que iria entrar, mesmo que ele me proibisse. Não era o meu dono, era o meu guarda-costas. Deu-se por vencido e foi o único momento em que invadiu o meu espaço pessoal. Abraçou-me os ombros e foi-me conduzindo pelo corredor e pelas vitrinas com um evidente embaraço. No fim da exibição, ria-se às escondidas e comentava em surdina as características que o baralhavam, porque não eram assim tão diferentes da pornografia atual. À saída, agradeci-lhe. Sem ele nem me deixariam entrar, pois só era concedida passagem a pessoas maiores de dezoito anos e eu tinha reparado no guarda sisudo à porta que fazia o controlo.

– Mas tu tens dezoito anos – disse, confuso. – Tens, não tens?

Assenti sem convicção. O Rino também sabia que eu me deitava com Diego e isso envergonhou-me. A sua opinião seria importante, se ele ma quisesse dar, mas ao mesmo tempo não queria escutá-la, pois tinha a certeza que ele não aprovava o que eu fazia. A sua consideração por mim teria essa mossa, essa falha derivada da minha má conduta e senti necessidade de lhe agradar mais, para que não me detestasse tanto. Lembrava-me de como abordara violentamente a Sinagra que exibia por toda a cidade um menino que anunciava como filho de Diego. Talvez, no seu íntimo, Rino me visse igual à Sinagra. Estava a ser simpático agora porque lhe pagavam para sê-lo, que toda aquela disponibilidade não vinha de graça. E depois? Imaginei-o a falar de mim à mulher, a chamar-me vaca como chamara à Sinagra, a contar a sua versão dos factos, a inocentar Maradona porque era o seu santo do futebol e a atirar-me todas as culpas, que tinha sido eu que seduzira e que enganara.

Na verdade, Rino nunca me mostrou má vontade e foi sempre correto comigo. As suas ações tiveram uma constância irrepreensível e quando me deixou em Posillipo no fim daquela tarde em que me doíam os pés de tanto andar, não mostrou qualquer indício de que me censurava ou de que pensava mal de mim. Pelo sim, pelo não, devolvi-lhe a cortesia com a minha honestidade. Nunca fui demasiado exigente ou menosprezei-o, segui sempre as suas indicações e acabei por demonstrar-lhe a minha sabedoria com um laivo de timidez que o fez escutar-me, por vezes, com uma expressão reverencial. Alguma coisa boa haveria de deixar de recordação na cabeça daquele napolitano modesto que volta e meia me elogiava, dizendo que eu era uma rapariga muito inteligente, que sabia muitas coisas. E aquilo parecia-me sincero.

Preparava-me para subir as escadas e ir tomar um banho quente, quando ouvi Diego a falar ao telefone. Estava a ter uma conversa tensa com alguém que o deixava irritado, ao ponto de a sua voz falhar e se tornar aflautada, sinal de que lhe mexiam com os nervos. Calou-se de repente com um suspiro que cortou a meio, sustendo a respiração. Escutou o que lhe diziam do outro lado da linha, concordou reticente, repetiu sim e sim e sim, de rajada, a seguir foi dizendo sim com intervalos cada vez maiores. Pouco antes de desligar, apertava a cana do nariz com a ponta dos dedos, dobrava o pescoço, crispava o rosto de tal maneira que criava rugas que o desfeavam em redor dos olhos e da boca. Terminou com um está bem contrariado e desligou o telefone batendo com o auscultador de encontro ao aparelho. Largou um berro a chamar por Cóppola que me sobressaltou.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now