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Quando reencontrei Jorge Valdano em Madrid, naquele mês de abril de 1987, ele já não tinha o aspeto de um futebolista. Pareceu-me mais um dirigente desportivo, um adjunto de treinador, um diretor técnico, um agente ligado indiretamente ao futebol. Mostrou-me o sorriso que me lembrava e que associava ao seu rosto, abraçou-me os ombros e beijou-me o topo da cabeça com aquela propensão para proteger-me com a sua estatura que me enternecia, mas havia nele qualquer coisa de diferente, de menos natural, de mais pesado e fixo. Também o notei macilento e vagaroso.

– Jorge.

– Cristina Velez. Bem-vinda a Madrid.

Para me certificar de que não me tinha enganado na análise, abracei-o. Enrijeceu imediatamente com o meu contacto. Afastou-me tentando deslizar airosamente, para que não desse conta do seu incómodo, mas percebi que não tinha gostado daquela demonstração excessiva de afeto. O sorriso era um esgar que não emitia alegria ou calor.

Relevei a sua atitude. Estava moída da interminável viagem de comboio que começara de madrugada e que terminava mais de doze horas depois, cansada até à medula, esfomeada, a sentir-me suja. Queria um banho, trocar de roupa, comer e dormir, por essa ordem. Jorge Valdano estava à minha espera na gare ultramoderna, muito semelhante a um aeroporto, com luzes, movimento, anúncios sonoros, escadas rolantes, lojas, cheiros diversos que não eram desagradáveis. Perfumes, flores, queijo derretido, chocolate. O meu estômago roncou.

Desconhecia se era por sorte, ou por cautela, mas ele pareceu-me relativamente calmo e nada preocupado em ser reconhecido num lugar tão cheio de gente. De resto, costumava ser um homem ponderado, era o que me lembrava. Não o via a pôr-se com histerias e subterfúgios para não ser incomodado. Se acontecesse saberia desenvencilhar-se com aquela elegância que fazia parte dele sem esforço. Continuava com um gosto impecável para se vestir, o cabelo encaracolado bem penteado e dominado por uma camada subtil de gel, um olhar sagaz, uma pele bem cuidada do rosto, do pescoço, das mãos que notoriamente não faziam trabalhos esforçados. Ele era o futebolista erudito que gostava de livros! E agora fazia a transição para outra ocupação com a mesma aura de sofisticação. Senti-me orgulhosa de ter um amigo assim.

– Fizeste boa viagem?

– Fiz, sim, Jorge. – Tapei um bocejo com a mão. – Desculpa... acho que isto é fome, mas também pode ter um pouco de sono à mistura.

Mostrou-me um sorriso mais sincero. Voltou a aconchegar-me a si. Retirou-me a mochila das mãos, passou a carregá-la. Começámos a andar.

– Escolheste mal o comboio, Tina. Podias ter chegado aqui mais cedo e aproveitavas para dar um passeio pela cidade, para descontraíres de tantas horas de viagem.

– Eu vi o preço dos bilhetes e os tipos de comboio. Não tinha dinheiro para mais...

– Ah. Desculpa, então. Acabei por ser indiscreto – pediu-me ligeiramente embaraçado.

– Não tens nada que te desculpar. Eu é que sou pobre e meto-me nestas aventuras doidas. No entanto, tenho algum dinheiro comigo. Consegui-o por sorte. Para os meus padrões é uma fortuna, mas se te contar vais rir-te de mim.

– Não me vou rir.

– Está bem, acredito. Vou guardá-lo para comprar esse bilhete no comboio mais rápido para a próxima vez.

Saímos da gare. No parque de estacionamento entrámos num carro topo de gama, um Mercedes bonito e brilhante, muito semelhante ao carrão de Jean-Marie. Havia um certo estatuto associado aos dois clubes e aos seus jogadores que se demonstrava através das máquinas que conduziam. Uma exibição de riqueza. Os carros que vi em Nápoles e que pertenciam a Diego e aos seus amigos eram normais, muito semelhantes aos que as pessoas minhas conhecidas conduziam em Portugal.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now