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A pista de dança era um recinto improvisado junto a um dos extremos da piscina, uma clareira exígua que não servia de passagem a ninguém e que, por isso, fora escolhida por algumas pessoas para gingarem o corpo ao som da música que ambientava os festejos do dia do nascimento do melhor futebolista do mundo. Encaminhei-me para lá, mas escolhi um lugar só para mim, longe do pequeno grupo que curtia o ritmo dançante de canções modernas que eu, muito de vez em quando, escutava na rádio. Conhecia os temas, por causa principalmente das minhas colegas que os comentavam com a ajuda da revista alemã Bravo e da troca de cassetes que acontecia amiúde entre elas. Uma vez tinham-me emprestado uma dessas cassetes. O som era péssimo, roufenho, não consegui ouvi-la do princípio ao fim e dos dois lados. Devolvi-a queixando-me da qualidade da cassete. Não me emprestaram mais nenhuma.

Em casa, ouvíamos músicas mais antigas, temas brasileiros, discos de vinil que o meu pai tinha comprado por atacado nos anos 1970 quando instalara a aparelhagem de som, que incluía rádio, leitor de cassetes, gira-discos e um conjunto sofisticado de colunas que proporcionavam um som límpido, alto e envolvente. Eu tinha preferência pelo Rock dos anos 1950, pelos Beatles, pela banda sonora do filme Flash Gordon tocada e cantada pelos Queen. Fora de casa não tinha ordem, nem liberdade, para ir a uma discoteca – a Monique ia com os pais, a Elizabeth frequentava-as todos os fins-de-semana com o namorado, a Ana Luísa escapava-se em segredo para poder dançar um par de horas e só ia aos estabelecimentos que tinham matinés. A primeira vez que dancei no que se podia chamar de discoteca acontecera em Puebla, durante a festa que celebrou a vitória da Bélgica sobre a Espanha. Depois, dancei com Diego na véspera da final e mais nada. Voltava a dançar nos jardins da casa dele, por ocasião do seu aniversário.

Gostava muito de música, de me soltar, de me expressar dessa maneira única que combinava melodia, movimento, paixão e infinito. Quando dançava, o mundo deixava de ter a espessura e o peso que me costumava condicionar, abafar e travar. Quando dançava, transformava-me na Cristina Velez perfeita, aquela que era igual por dentro e por fora, transparente e autêntica. Quando dançava, ficava repleta de vida, cheia de luz, não havia uma única sombra ou esquina em mim.

Um par de estoiros, assustei-me. As rolhas saltavam das garrafas de champanhe. Uma enchia copos da bebida borbulhante, a outra servia de chuveiro a quem estivesse perto. Continuei a dançar, mais gente se juntava à dança. O jantar estaria a terminar ou teria terminado para a maioria dos convivas.

Agarraram-me na mão, fizeram-me rodopiar. Diego chegou-me uma taça de champanhe aos lábios. Bebi sem uma careta, a fixar-lhe os olhos negros brilhantes. Ele estava suado, eufórico, frenético, bestial. Era a sua taça de champanhe. Ele bebeu depois de mim. Atirou-a, vazia, para a piscina. Continuava a agarrar-me na mão. Dançámos os dois assim, de mãos dadas. Não dissemos nada um ao outro. Simplesmente, dançámos. A música era a única linguagem de que precisávamos.

O nosso baile estava a ser observado atentamente por um homem de calças de ganga muito usadas, tão velhas que o uso intensivo deixara manchas descoradas nas coxas e nos joelhos. Usava a camisa justa, de um vermelho espampanante, aberta quase até ao umbigo, via-lhe o tufo de pelos escuros do peito a assomar-se abaixo dos colarinhos. Um cordão grosso de ouro ornava-lhe o pescoço. Bebia uma garrafa de cerveja.

Diego também reparou nele. Apresentou-nos. Daniel Arcucci, jornalista da revista desportiva argentina El Grafico. Um grande amigo, alguém que era primeiro um companheiro, depois um homem da imprensa. Esteve no México, fazia reportagens muito boas, sabia como poucos o que era preciso destacar numa peça jornalística. Via muito, via tudo, ou quase tudo, emendou Diego cáustico, para depois contar o essencial. Continuávamos de mãos dadas, pormenor que Arcucci notou, mas que fingiu desprezar. Arrepiava-me na presença dele – era como estar a olhar para um inimigo que nos pode estraçalhar, mas que enfrentamos com a coragem louca e ousada que nos garante a sobrevivência no desafio mortal. Bastava um deslize para que o desequilíbrio me aniquilasse, que eu era o elo mais fraco daquela cadeia. Excitava-me ser tão estupidamente imprudente.

Aqueles Dias de MaravilhaTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang