71.

14 4 22
                                    


O jogo teve início com o pontapé simbólico de Pelé. Era por esse motivo que o brasileiro se mantinha colado a Platini e a Diego. As bancadas aplaudiram e assobiaram. O lugar onde eu me sentava ficava por cima do banco dos visitantes, muito perto do túnel que conduzia aos balneários, situado para a minha direita. A zona estava reservada aos convidados da festa. Vi-me acompanhada por mulheres, crianças, alguns adolescentes enfastiados, homens barrigudos de cabelos brancos. Depreendi que os mais jovens e fortes estavam em campo. Ainda vi alguns rapazes, mas eram tão poucos que se diluíam facilmente no grupo e passavam por invisíveis.

A troca de galhardetes fez-se pelas mãos de Jean-Marie e de Platini. Embora Diego usasse a braçadeira de capitão delegou no belga a incumbência de participar nas formalidades de abertura. E claro que Jean-Marie aceitou-as, incrivelmente vaidoso. Depois da moeda ao ar, saiu a seleção do resto do mundo a jogar.

Na bancada, mantive-me ostensivamente isolada, fingindo que não percebia o francês que a maioria falava. Ninguém procurou conhecer-me e agradeci que me deixassem em paz. Só queria ver o jogo. Mais tarde, cerca de dez minutos após o apito inicial, o Pelé veio para o banco e sentou-se perto de mim, uns poucos degraus abaixo. Via-lhe bem a parte de trás da cabeça e ouvia-o melhor ainda. Comentava as jogadas e apontava os seus protagonistas, expressando-se em inglês. Mexia as mãos com vigor, para depois recolhê-las, pousando os braços nas pernas e entrelaçando os dedos, fazendo um movimento de ombros. Irritou-me que estivesse a elogiar o russo Belanov utilizando adjetivos como estupendo, fantástico, excelente, foi um grande "bola de ouro" no ano de 1986. A sério?, pensei com uma careta. Em 1986 aquele russo raquítico, com falta de cabelo, foi considerado o melhor jogador do mundo? E Diego? A seguir falou de Lothar Matthaeus e de Hugo Sanchéz utilizando os mesmos termos absurdamente elogiosos, num exagero hiperbólico que se tornava enjoativo e nunca, nunca mencionou Diego Maradona. Devia mudar de lugar para deixar de escutar aquelas parvoíces, ainda que viessem do brasileiro que era considerado o rei do futebol, mas tive preguiça de me levantar e de procurar outro lugar. Bastava filtrar os sons, sobrepor o barulho do estádio à voz monocórdica de Pelé e pronto, problema resolvido.

Custava-me, a sério que me custava e chegava a doer-me, que fossem tão sobranceiros, condescendentes e maldosos com Diego. Ele podia ganhar tudo, conquistar os títulos mais incríveis, que nunca parecia suficiente. Quando perdia justificava todas as críticas. Quando ganhava, contudo, não apagava a relutância de quem fazia questão de o desdenhar. Diego era incómodo e imprevisível, assumidamente rebelde, demasiado genial para que fosse compreendido e aceite sem reservas. E eu, determinei convicta, eu haveria de defendê-lo para sempre, mesmo que isso fosse ofensivo ou estranho ou censurável.

Porque Diego Maradona era e continuava a ser pura magia quando tinha uma bola nos pés. Naquele jogo a brincar, que ele nem levava muito a sério, inserido numa equipa desprovida de qualquer identidade que não estava habituada a jogar junta, desenhava linhas de luz no relvado sempre que o esférico se aproximava dele e cortava-me a respiração. O estádio também reconhecia a sua superioridade, pois exultava, suspirava e aclamava quando Diego jogava. Uma corrida, um passe, um remate, uma finta, uma acrobacia. E ele estava lesionado, note-se! Foi dele um lance elaborado de estilo e força, um potente pontapé à meia volta que o guarda-redes francês Bats defendeu e que fez as bancadas delirar. Foi também dele o passe a rasgar o meio-campo que isolou Matthaeus que fez o primeiro golo da partida. Um a zero e ganhava o resto do mundo à França de Platini.

De resto, o que podia contar mais sobre o jogo? Os meus olhos só viam Diego e Jean-Marie. De vez em quando tentava acalmar-me e perceber o que ia acontecendo em campo para ser mais isenta e credível na minha análise, mas passei a primeira parte a suspirar, a sorrir, a deslumbrar-me com o argentino e com o belga que defendiam as mesmas cores. Beliscava-me para me certificar de que não estava a sonhar, que aquilo estava mesmo a acontecer.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora