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O ano de 1988 chegou sem grande alarido. A passagem do ano aconteceu em casa e recebemos a visita de familiares no primeiro dia de janeiro, irmãos e cunhados da minha mãe, os meus avós maternos, os primos pequenos. Ficaram para o almoço e para o jantar. À tarde demos um passeio até à baixa, fomos visitar o presépio que se montava nesta época no quartel dos bombeiros voluntários da cidade. Joguei moedas para o lago artificial, para a imitação de deserto, para o meio dos moinhos.

As festas correram bem e foram tranquilas. A ausência do meu tio, que falecera em abril, foi sentida e lançou uma nota de tristeza na mesa da ceia de Natal. Algumas lágrimas de saudade, brindes à memória, palmadinhas nas costas, toques no braço. Depois histórias felizes, gargalhadas tristes, mais lágrimas. Fui excluída dessa roda de adultos emocionados e nostálgicos. Fiquei a observar de longe, a decorar os gestos, a fixar as palavras, a imaginar-me a perder alguém próximo, mais próximo do que o meu tio, a sofrer a angústia que via perpassar pelos rostos dos meus familiares, que se transmutava entre tristeza e alegria, numa luta constante para manter a sanidade, para manter a força. Como seria aguentar um tal sofrimento? A abertura das prendas de Natal fez-me esquecer essas questões, mas quando escrevi no meu caderno que tinha as páginas anteriores ocupadas com as minhas aventuras no estrangeiro, porque apeteceu-me deixar umas palavras a Jean-Marie e a Diego naquela ocasião e desejar-lhes assim um feliz Natal em diferido, falei na dor que seria perdê-los. E chorei.

No dia seguinte, rodeada pelos brinquedos novos dos meus primos, já tinha outra vez esquecido a tristeza e o peso do drama imaginado de me ver privada das pessoas que me eram especiais.

As aulas retomaram logo a quatro de janeiro e a escola voltou a ocupar o centro da minha existência. Ao rever os meus colegas, especialmente a Monique, que me contou entusiasmada a sua viagem a França onde passara as festas com os parentes que ainda continuavam emigrados nesse país, instalou-se a rotina costumeira que me apaziguava, pois dava-me a certeza de os dias serem preenchidos e previsíveis. Os meus pensamentos não se avolumavam tanto na cabeça.

Juntámos um grupo, no início de janeiro e fomos ver o filme "La Bamba" que contava a história trágica de Ritchie Valens, um cantor que tinha morrido no acidente de avião que também vitimara outros dois cantores, o The Big Bopper e o famoso Buddy Holly. A canção do título do filme passava incessantemente na rádio, ocupava o topo das tabelas dos discos mais vendidos e era das mais dançadas nas matinés de sábado nas discotecas. Foi uma choradeira pegada no fim, quando o protagonista morria e se tornava imortal através da música. A Monique encostou-se ao meu ombro a soluçar, eu fazia-lhe festas nos cabelos enquanto as lágrimas deslizavam-me pelo rosto. Ao mesmo tempo lembrava-me do avião particular de Diego e o que aconteceria se este se despenhasse comigo lá dentro. Haveria choque, comoção, espanto como acontecera com Ritchie Valens? Muito provavelmente. E seria horrível que soubessem da minha ligação com Diego Maradona dessa maneira.

Dias depois o Futebol Clube de Porto acrescentava ao seu palmarés o último triunfo que nascera da conquista da taça dos clubes campeões europeus – ganhava a supertaça europeia, derrotando a equipa holandesa do Ajax. Novamente festa portista na cidade do Norte e um pouco por todo o país. Descobri que o meu colega Adriano torcia pelos azuis e brancos. Meti conversa com ele, falei-lhe no Benfica, o meu clube, no Farense de quem era sócia, no campeonato nacional, na Serie A, na Bundesliga, na liga espanhola, no campeonato do mundo do México. Impressionei-o e acho que ele se apaixonou. Só haveria de se declarar um ano mais tarde, mas foi o futebol que o fez ficar encantado em mim. Nunca pensara que isso fosse motivo para gostar de alguém – Jean-Marie e Diego não contavam, obviamente – e nem me apercebi do interesse romântico do Adriano. Costumava ser um pouco distraída e demasiado pragmática nas questões do coração.

No final de janeiro Diego voltou a convidar-me para ir a Nápoles. Telefonou-me numa sexta-feira. A minha mãe estava a passar roupa a ferro na sala e a ver televisão ao mesmo tempo. Apercebeu-se de que eu falava em espanhol e perguntou alto, sendo totalmente inconveniente, se era o meu namorado mexicano. Fingi que não a tinha ouvido e, por sorte, Diego também não a ouviu ou teria querido saber que história era essa. Ficaria incomodado, porque ele não se perdia de amores pelos mexicanos e certamente não gostaria de ser confundido com um deles.

Perguntou-me se queria ver o jogo que iria acontecer no San Paolo contra o Cesena. Tinha-se esquecido da conversa que tivéramos no início do mês, sobre o avião dele estar a ser espiado em Portugal por um jornalista abelhudo, com a conivência de um funcionário do aeroporto pouco escrupuloso. Eu não quis entrar em pormenores, a minha mãe olhava-me muito curiosa e tinha aquela postura de que estava a escutar cada palavra que eu dissesse, disfarçando que se distraía com o filme na televisão e a camisa do meu pai que engomava muito lentamente. Respondi a Diego que não podia. Não era oportuno, tinha testes, desculpei-me. Ele disse, está bem.

– É o avião – acrescentei.

"Ah, o avião...", retorquiu Diego.

Acho que ele não percebeu e cortámos a ligação.

Nunca mais me telefonou a convidar-me para ir encontrar-me com ele a Nápoles. Ter-se-á lembrado do problema momentâneo com o seu avião particular ou esqueceu-se, pura e simplesmente, que eu existia. Qualquer uma dessas hipóteses magoou-me, confundiu-me e entristeceu-me.

Não perdi muito tempo, contudo, a remoer a sensação de ter sido abandonada pelo meu amigo argentino, pois para as férias do Carnaval recebi uma proposta para viajar e agarrei-a com as duas mãos, ansiosa por sair da prisão da minha casa e da minha cidade.

O peso desse abandono, dessa atitude distante que eu entendi como uma rejeição só se tornou evidente, só me enervou ao ponto de chorar todas as noites antes de adormecer, quando o tempo passou e o silêncio de Diego tomou um peso e um volume que me comprimiam o peito e me deixavam inerte, esvaída e estupefacta.  

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now