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As minhas férias de verão começavam finalmente!

Era esse o sentimento que tinha, de início de férias, quando, em julho de 1986, estava no banco de trás do carro a caminho da nossa casa de férias, situada numa vila pacata do barlavento algarvio bem servida de praias chamada Lagoa. Aguardavam-me dias de sossego intermináveis, porque os dias de verão eram realmente longos, com o Sol a demorar a pôr-se muito para lá das nove da noite, e outras tantas noites animadas, em passeios divertidos junto da família.

Tinha a janela aberta e levava com o ar daquele dia quente e brilhante no rosto.

Fechava os olhos e sentia-me feliz.

Na verdade, aquele verão tinha começado para mim com uma viagem ao estrangeiro, no mês de junho. Acompanhara a minha tia Anita Velez até ao México e passara quinze dias nesse país, mas era sentimento geral, e eu achava que até concordava com isso, que a viagem acontecera em contexto de trabalho. Eu também fora para o México para trabalhar – só assim fui dispensada dos últimos dias de aulas, as faltas devidamente justificadas por um documento assinado pelo meu encarregado de educação. A versão oficial era de que tinha estado a ajudar a minha tia nas suas pesquisas académicas sobre tumbas aztecas e outras preciosidades arqueológicas, a aprender mais sobre História e a enriquecer o meu currículo nessa área académica. A verdade, porém, era muito diferente.

No México... vivera de perto o campeonato mundial de futebol.

Quando me lembrava do México, a minha mente não reconstruía expedições a túmulos antigos e a pirâmides no meio da selva, ou o manuseamento de artefactos preciosos protegidos por gaze e algodão enfiados em caixas de vidro, ou o estudo aturado de manuais sobre arqueologia. Quando me lembrava do México, recordava-me de campos relvados, de uma bola a entrar numa baliza, de abraços, de festas, música, excitação, alegria e amigos que o meu coração adorava sem limites. E depois desfazia-me num sorridente encantamento.

Era um segredo meu. Ninguém sabia o que me tinha acontecido. Nem sequer a minha tia Anita. Para ela, eu andara a fazer turismo em terras mexicanas, ocasionalmente na companhia de um namorado que arranjara por lá. Quando cheguei a casa desviei uma caixa de sapatos do armário, forrei-a com os restos do papel de embrulho colorido com os quais tinha protegido os meus livros durante aquele ano escolar e guardei aí dentro o caderno onde estava o meu diário desses dias, o boné vermelho com o emblema da federação belga, a pequena boneca de trapos mexicana, dois cartões de livre-trânsito e a camisola oficial da seleção argentina sem qualquer número nas costas. Empurrei a caixa para a estante e disfarcei-a com os livros. Quando o fiz senti que abandonava aquela porção da minha vida. Semicerrei os olhos e achei-me uma traidora. Achei que, por enquanto, podia esquecer o diário na caixa, mais o boné, os cartões, a boneca e a camisola, sabendo que estariam lá quando regressasse. Os objetos imaculados e com todas as lembranças, vívidas e persistentes, agarradas.

Chegámos ao nosso destino perto das seis da tarde. A casa, por estar tantos meses fechada – só era utilizada nas pausas escolares, quando era possível aproveitar um fim-de-semana alargado, e nas férias do verão –, tinha aquele cheiro a cimento húmido e a madeira velha. A minha mãe tratou logo de abrir as janelas todas para arejar o interior da habitação.

Era uma casa pequena. Tinha um quarto amplo, uma sala, uma cozinha e uma casa-de-banho. Através de umas escadas estreitas acedia-se à açoteia, um terraço de ladrilhos vermelhos que estava parcialmente coberto por uma lona para fazer sombra e proporcionar refeições ao ar livre, usualmente preparadas num grelhador fixo construído em alvenaria. O verão significava muitos grelhados, saladas, fruta e água gelada. Eu adorava essas comidas – desde que não se exagerasse no peixe, que eu não gostava muito para arreliação dos meus pais.

Normalmente eu dormia na sala, numa cama desmontável. O meu irmão ficava no quarto com os meus pais, quando não ia dormir na casa de um primo durante a maior parte das férias. Eu também costumava ficar com uma tia, que me convidava sempre para ir para a sua casa e assim ajudava-a a cuidar do bebé e a fazer limpezas, o que eu adorava, pois considerava uma distração válida que associava às férias. Para mim, as tarefas domésticas eram uma espécie de brincadeira, pois normalmente nunca fazia nada daquilo durante o ano, à exceção de ir comprar pão ou leite.

A minha mãe entregou-me a mochila e a minha mala e pus-me a arrumar as minhas coisas nas gavetas de um móvel da sala que me pertencia. A cama desmontável estava arrumada ao lado, dobrada, com uma colcha tricotada e colorida que a protegia do pó. Teria de armar a cama todas as noites, fazê-la com os lençóis que a minha mãe também deixou comigo e desarmá-la de manhã para deixar o espaço livre na sala para receber visitas e vermos televisão. Não me importava e adorava ter essa incumbência que me fazia sentir útil e independente.

Estava muito calor, mesmo àquela hora e eu suava bastante, lamentando não haver ali ar condicionado como tivera nos quartos de hotel que conhecera no México.

A minha mãe entregou-me dinheiro e pediu-me que fosse até a uma churrasqueira próxima comprar frango assado e batata frita, pois não lhe estava a apetecer fazer o jantar. Obedeci imediatamente. Era o habitual e era reconfortante mantermos as mesmas rotinas. Chegávamos à casa de férias de Lagoa, desfazíamos as malas, a minha mãe não queria fazer o jantar, também ela queria estar de descanso, eu saía e dava aquela primeira volta a verificar que estava tudo nos seus devidos lugares, um ano depois. Umas mudanças benignas aqui e além, a fachada de uma casa pintada de novo, a calçada arranjada naquele ponto, uma moradia à venda, uma paragem renovada para autocarros, um café novo com uma esplanada, o primeiro andar daquele prédio finalmente habitado. Fazia sempre a análise com esse intervalo de tempo – trezentos e sessenta e cinco dias passados, as coisas estavam assim ou assado. Era certo que íamos até ali durantes muitos fins-de-semana ao longo do ano, mas considerava esses períodos mínimos, uma passagem rápida, por vezes chovia e os dias eram feios, não havia tempo para que detetasse alterações assinaláveis aos marcos que eu fixava para serem verificados por mim nas férias grandes.

A churrasqueira ficava perto da nossa casa e eu ia a pé, por vezes a saltitar, com a carteira onde guardava o dinheiro presa na mão, uns chinelos nos pés, a saia do vestido a adejar com a minha felicidade. Havia sempre gente a tagarelar nas imediações da loja, que aguardavam a sua vez ou que já tinham sido atendidos e que aproveitavam para colocar a conversa em dia sobre algum mexerico. Via os olhos das pessoas a darem com a minha presença, a seguirem os meus passos. Conheciam-me, conheciam os meus pais e a minha família que era natural da vila. Nunca me diziam nada, mas sabia que, mais tarde, haveriam de comentar que estávamos de volta. Se encontrassem a minha mãe eram mais expansivos e faziam aqueles elogios normais de que eu estava bastante crescida, perguntavam a minha idade e como tinha corrido a escola.

Muita gente tinha tido a mesma ideia de jantar frango assado e a churrasqueira estava apinhada. Parei junto à porta de entrada, no que me pareceu uma espécie de fila de espera. Os meus olhos percorreram vagarosamente o que me rodeava, assegurando-me que ali não havia diferenças em relação ao ano passado. Nisto, o meu coração afundou ao topar os cartazes e autocolantes que decoravam, de uma forma muito aleatória, a vidraça da pequena montra e que normalmente exibia publicidade a marcas que forneciam bebidas, gelados e snacks salgados à loja.

Encostado a um dos caixilhos estava um cartaz pequeno, um pouco maior do que uma folha para fotocópias, desbotado pelo sol, rasgado num dos cantos a mencionar a Coca-cola. Agarrado à garrafa típica do refrigerante estava El Pique, a malagueta verde que usava um enorme chapéu sombrero e vestia um equipamento vermelho, verde e branco de futebol. A mascote do México '86! Perto da frase curta que nos instava a refrescar-nos com a famosa bebida estava o logótipo do mundial, o mundo em planisfério separado por uma bola.

A garganta doeu-me quando quis engolir, mas não tinha uma gota de saliva na boca.

– Menina, a fila já andou... estás aí a pensar na morte da bezerra!

A voz aborrecida atrás de mim obrigou-me a despertar.

– Ah, sim. Sim. Desculpe.

Acerquei-me do balcão e fiz o pedido. Falava como um autómato. O meu corpo estava ali, na churrasqueira, o meu espírito, não. Pairava alegremente e aterrava ainda mais alegremente nas bancadas do estádio Azteca 2000 onde eu estava a assistir ao mais bonito espetáculo desta vida: um jogo de futebol!

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now