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No início do verão de 1989 o vestido de Puebla deixou de me servir. Ficou-me justo no busto e curto em baixo, mostrava-me as pernas acima dos joelhos quando devia tapá-los. O choque foi tão grande que paralisei em frente ao espelho de corpo inteiro do quarto da minha mãe onde me observava.

O vestido de Puebla devia ser eterno, tinha de crescer comigo, acompanhar-me pela vida fora, como uma pele que se ia esticando e acomodando o meu novo tamanho, as minhas novas curvas. Vê-lo desajustado ao meu corpo chocava-me e feria-me.

Tudo me corria mal por aqueles dias de final de junho. Até o vestido de Puebla resolvera sabotar-me. Os meus ombros descaíram. Notei na lividez do meu rosto que mostrava umas olheiras feias, andava a dormir mal porque me deitava muito tarde e levantava-me cedo, uma perplexidade magoada que em breve se desfaria num choro convulsivo.

O vestido de Puebla era o México. Era um jantar, uma festa, um encontro providencial num jardim. Era luz, felicidade, perfume e sorvete. Era fotografia, piza, diário secreto. Era a minha versão inocente, aquela Cristina despreocupada que inaugurava um mundo novo. Essa Cristina crescera e mudara. No início, estúpida e inconsciente, adorara crescer, fazer-se mulher, julgando-se exploradora de novas paisagens onde seria mais livre e dona do seu destino. O vestido fizera-lhe a vontade e deixara-a crescer. Mostrava-lhe agora que tinha efetivamente crescido. O vestido já não cabia na Cristina grande, adulta, mais velha.

O que eu perdia ao crescer era muito mais do que aquilo que ganhava e entristeci.

– Sim, já não te serve – observou a minha mãe que passou atrás de mim. Assustei-me. – Põe o vestido de lado, logo o junto à roupa para dar.

– Não! – contestei em desespero.

A minha mãe, que se preparava para sair do quarto, foi para junto de mim. Aparecemos as duas no reflexo do espelho. Eu, espartilhada num vestido pequeno, a minha mãe de braços cruzados.

– Não, porquê? O vestido já não te serve.

– Vou ficar para sempre com este vestido – expliquei com a voz trémula. – Não o podes dar. Não quero que o dês. Eu guardo-o numa gaveta, bem dobrado, se não queres que ocupe espaço desnecessário no meu roupeiro. Mas não o podes dar. Eu não vou deixar.

– Tanta coisa com esse vestido, Cristina! – criticou-me. – Se quiseres que a tua tia Anita te compre outro, basta pedires. Ela faz-te novamente o jeito.

– Não seria igual... porque o vestido foi comprado no México.

– O vestido nem sequer é bonito...

– O vestido é lindo, mãe! – protestei. – Nunca tive um vestido como este e nunca mais vou voltar a ter um que seja remotamente parecido.

A minha mãe ergueu os braços, num gesto que indicava rendição.

– Faz o que quiseres. Só não o voltes a vestir. Fica-te muito mal usar roupa que já não te serve. E nem há necessidade. Queres um vestido novo, vamos à loja comprar-te um vestido novo. Tanto drama por causa de um trapo!

Assenti, calada. No meu quarto, despi o vestido. Mantive-o nas mãos durante muito tempo. Estendi-o para a parede dos posters e murmurei para as imagens de Diego e de Jean-Marie: até isto já terminou. Tudo termina, não é? Tudo termina. Dobrei-o com um cuidado extremo, demorando-me em cada vinco, recolhendo e guardando todas as memórias no tecido. Limpei as lágrimas que corriam pelas minhas faces. Acabava de enterrar mais um pedaço do meu sonho.

Perdi o apetite e emagreci muito. A minha mãe ficou preocupada. No início julgou que era uma tentativa minha de voltar a caber no vestido e repreendia-me. Depois entendeu que seria coisa mais séria e levou-me a um médico. Eu fui, apenas para quebrar o tédio e porque queria ver se o homem conseguia adivinhar o que eu tinha só de olhar para a minha cara. Imaginava-o a fixar-me com um olhar perscrutador, enquanto me auscultava com o estetoscópio. Imaginava-o a cogitar longamente, a determinar, enquanto retirava o aparelho dos ouvidos e o deixava em redor do pescoço, o seu diagnóstico inequívoco. O que a sua filha tem é saudades do passado, mais concretamente de Diego Maradona, de Nápoles e do México. Existe aqui também um pequeno sintoma associado à Bélgica e ao guarda-redes Jean-Marie Pfaff, mas de quem ela mais sente falta é do argentino.

Aqueles Dias de MaravilhaМесто, где живут истории. Откройте их для себя