75.

15 4 16
                                    


O jantar tradicional anual da família do meu pai aconteceu excecionalmente naquele ano em julho, mais ou menos a meio das nossas férias. Foi a minha tia Anita que obrigou à mudança da data. Anunciou que em agosto iria viajar, não especificou o destino, só disse que precisava de uma pausa e que iria fazê-la fora do país com o Joaquim, foi categórica na exigência de o jantar acontecer já e não no próximo mês.

O meu pai não colocou qualquer objeção e a minha tia Joana acabou por aceitar, que era sempre a mais relutante e a que sabotava todas as sugestões, pois chegava ao Algarve naquele mesmo dia.

Encontrámo-nos na casa dos meus avós paternos às seis da tarde, como combinado, mas a tia Anita ainda não tinha chegado. A tia Joana comentou que os anos passavam e a Anita não mudava. Punha e dispunha, ordenava e desmanchava, criava e destruía, todos andavam a reboque das suas vontades e depois fazia-se de cara, de esquisita, como uma rainha caprichosa louvada à náusea pelos súbditos que lhe deviam a sua existência. Tentou trazer o meu pai para a sua causa, mas ele não ligou nenhuma àquelas observações azedas porque eram mais do mesmo, até eu percebia isso.

Ignorada e pouco contente com isso, a tia Joana apontou-me as baterias. Perguntou o que é que se passava comigo. Tinha um aspeto desmazelado. O cabelo curto não me favorecia e aumentara de peso. No ano passado estava mais bonita, maquilhada e cuidada. Agora até tinha voltado aos óculos!

Encolhi-me, incomodada. Naquela maneira direta e cruel, a tia Joana fora mais contundente que um espelho. Baixei a cabeça. Ela tinha razão. Ela tem razão, sabes? Estás horrível e metes nojo! Se Diego te visse agora haveria de te dizer a mesma coisa. Estás feia, feia, feia... o que queres provar, Cristina Velez? Que não mereces ter o que tens e seres o que és? Se Jean-Marie te encontrasse nem te reconheceria. Ficaria horrorizado! Dava-te um sermão e era muito bem dado.

O meu estômago embrulhou-se e a fome esganada que trazia, disposta a repetir pratos e a exigir dose dupla de sobremesa, desapareceu. Queria chorar, vomitar e dormir. Queria minguar e desaparecer num fiapo de fumo.

O meu pai também não respondeu à irmã e a Joana exigiu o esclarecimento à minha mãe que respondeu, lacónica, ninguém dá conta dela. Pensa que sabe tudo e para não nos aborrecermos muito, agora é deixá-la fazer o que lhe dá na gana. Se quer ser gorda, que seja. Algum dia há de achar um exagero e vai tentar ser magra. São dezasseis anos, Joana. Quem consegue aturar uma rapariga de dezasseis anos? Curiosamente, a minha tia concordou, olhando-me com pena. Deu graças a Deus por ter tido filhos e não filhas, se era para aturar esse tipo de mudanças de humor.

Afastei-me dos adultos. E também dos meus primos e do meu irmão. Sentei-me no sofá. Retirei um caderno da minha mala e comecei a escrever uma carta ao meu amigo e colega Jorge. No último período de aulas tínhamos descoberto que ambos adorávamos História e arqueologia. Começámos a conversar mais um com o outro, ele trouxe-me livros que tinha em casa, eu mostrei-lhe os meus, incluindo um manual que trouxera do México sobre tumbas aztecas. Trocámos moradas e prometemos escrever-nos nas nossas férias, mas até àquele dia não lhe escrevera, nem ele a mim. Pareceu-me que estava na hora. A carta foi alegre e despreocupada. Serviu para mascarar a tristeza que se derramava, como tinta negra, na minha alma. Assim, evitei chorar e dar razão à tia Joana.

A tia Anita chegou com o Joaquim já passava muito das sete da tarde. Cumprimentou toda a gente com pressa e mandou-nos para a mesa, mas que disparate estarmos à espera dela para começar a comer. A minha avó zangou-se. Nunca nos sentámos à mesa antes de estarmos todos. A minha tia desvalorizou a repreensão. Admirei-a. Queria ter a sua força, a sua vitalidade, aquela maneira imponente e elegante de divergir os ataques e de não ser atingida por nada que lhe atirassem. Era absolutamente dona e senhora da sua vida e do seu destino. E, naquele jantar, comprovou-o uma vez mais – e ainda me ajudou.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now