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Em novembro não recebi nenhuma carta de Jean-Marie com novidades futebolísticas além-fronteiras que, francamente, interessavam-me mais do que aquelas que contavam sobre os feitos dos clubes portugueses nas competições nacionais e internacionais. Apesar de ter sido quase escandaloso a eliminação do Porto, campeão europeu em título, pelo Real Madrid, não me importei muito, já que o meu Benfica tinha avançado na prova. O clube espanhol, no entanto, tinha a minha admiração e via-o como um sério adversário a ter em conta, pois antes já tinha eliminado o Napoli do grande Maradona.

Em vez da carta veio um telefonema, sensivelmente a meio do mês. Jean-Marie estava furioso comigo e exigiu-me explicações sobre o fim-de-semana que tinha passado com Maradona em Nápoles no fim de outubro. Deixei-o falar. Atirou-me um relambório de acusações e de ofensas, de perguntas que não esperou que eu respondesse. Gritava-me, respirava fundo para se acalmar, tornava a berrar, completamente desvairado. Segundo ele, tinha sido uma irresponsabilidade minha ter viajado para Itália sem que ninguém soubesse, o mesmo seria dizer, que nenhum adulto tinha sabido, os meus pais ou ele que era o meu tutor não declarado. Trocando por miúdos, eu não podia ausentar-me sem lhe contar, como já me tinha avisado um cento de vezes. O problema era somente Diego, claro. Eu podia fazer a minha vida normal, ir passear para onde bem entendesse, menos para Nápoles, menos para a casa de Maradona. Eu tinha falhado, dava-me conta e, agora, mais de quinze dias depois de ter ido e de ter voltado sem que tivesse sofrido um beliscão, Jean-Marie indignava-se, vituperava, exagerava.

Tentei escutá-lo com alguma isenção, percebendo a sua posição, compreendendo que era tudo para meu bem, como das outras vezes em que eu, fechada a discussão, tinha percebido e tinha compreendido, mas era difícil quando me sentia tão mal fisicamente. Estava com o período e era daqueles particularmente dolorosos. A barriga contraía-se com cãibras, estava enjoada, a cabeça estalava, não sentia as pernas dormentes. Ouvir a fúria verbal de Jean-Marie piorava o meu estado, azoava-me e entristecia-me. Comecei a tomar a pílula que a médica ginecologista me tinha receitado. Ela tinha-me assegurado que ajudar-me-ia a suportar os efeitos da menstruação e até a eliminá-los completamente com uma toma regular do medicamento. Como fazia-o pela primeira vez, contudo, ainda não havia resultados. Isso impacientava-me e fazia-me cismar nas dores com demasiada atenção.

E entre as dores, um pensamento se fixava, molesto e torpe: Jean-Marie estava a ser um bruto! Mais uma vez, apesar de todas as promessas, detestava que eu convivesse com Diego. Ele não queria, resumindo, que eu me desse com o argentino longe da sua influência. Os homens eram todos iguais. Mentiam-nos para que achássemos que eles tinham mudado, mas continuavam a fazer as mesmas asneiras embaraçosas que feriam e que destruíam.

Como eu não dizia nada, às tantas ele achou que a chamada tivesse caído. Começou a chamar-me ininterruptamente, estou, estou sim, Tina, estás aí, responde por favor, estou, estou... E foi então que desliguei mesmo o telefone, farta daquele chorrilho de disparates, os que Jean-Marie verbalizava com tanta ênfase, os que eu extrapolava raciocinando no meio da névoa mental que derivava do meu fraco estado anímico.

A seguir estendi-me na cama, deitada de costas, braços sobre a cara para tapar os olhos e desatei a chorar. Se fosse obrigada a fazer uma escolha entre Jean-Marie e Diego... não a faria. Achava também que era demasiado imatura e inexperiente para gerir aquela situação com a diplomacia necessária para deixar Jean-Marie satisfeito e não perder Diego. Tanto chorei que adormeci.

No dia seguinte, na escola, sentia-me apática e derrotada. Jean-Marie não voltara a ligar, pelo que tinha percebido que eu lhe tinha desligado o telefone na cara por não ter gostado da sua atitude. Só pensava nisso e estava completamente distraída, tanto nas aulas, como nas pausas entre disciplinas. Num desses intervalos, o colega Jorge chegou-se ao nosso grupo e pôs-se a conferenciar com a Monique sobre os correspondentes estrangeiros, os famosos penpals da organização International Youth Service. Interessei-me imediatamente e disse que queria preencher um formulário. Já o tinha feito, lembrei à Monique, mas não tinha dado em nada. Revelei-me zangada e frustrada. Fomos até à reprografia e fotocopiámos o formulário único que estava disponível na página da revista – podíamos fazer cópias, dizia nas instruções. Preenchi a folha a preto e branco que o Jorge me entregou. No campo para escolher os países com os quais pretendíamos corresponder-nos escrevi Itália, Bélgica, Brasil, Espanha e Alemanha. A Monique, a Lídia e a Maria também preencheram cada uma o seu formulário. O Jorge já tinha o seu alinhavado. Comparámos os países, comentámos o que esperávamos conseguir, podiam aparecer rapazes ou raparigas e o ideal era conseguir amigos estrangeiros do sexo oposto. Brincámos sobre viagens hipotéticas às casas desses novos amigos, a visita deles à nossa casa. A certa altura, entristeci e calei-me. Eu já viajava para a Alemanha e para a Itália, mas nunca podia devolver a hospitalidade. Era impossível convidar Diego para me visitar, o escândalo que não seria a todos os níveis. Fiz um sorriso murcho. O Jorge comprometeu-se a meter os formulários nos correios. Demos-lhe o dinheiro para os selos e para os postais.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now