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Fiz mal em regressar à Bélgica. De repente descobri que não me enquadrava naquele país, naquela cidade, naquela casa, na família de Jean-Marie. Um ano depois estava tudo tão diferente que recuei amedrontada para uma trincheira que me apressei a cavar onde me resguardei daquele mundo que era amigavelmente estranho.

A Carmen recebeu-me muito bem, como sempre me recebera. Simpática, atenciosa, tranquila, maternal. Por minha parte, reagi de forma normal, acolhendo a sua hospitalidade e mostrando-me humildemente agradecida, disposta a escutar, a obedecer, a colaborar. Era uma postura que lhe agradava e que a deixava confortável. Foi só quando arrumava a minha bagagem no quarto de hóspedes que me apercebi que havia qualquer coisa intrínseca e dissimulada que me deixava encurralada, que me provocava, que me desatinava. Olhei em volta e detestei o espaço por continuar a ser tão maravilhosamente ordenado e assético, sem nada fora do lugar. O meu quarto, mesmo quando estava arrumado, era mais caótico do que aquele compartimento onde tudo combinava, desde os cortinados, passando pela colcha, até ao abajur que envolvia o candeeiro do teto. A perfeição intimidou-me.

Sentei-me na cama a torcer as mãos e a ranger os dentes. Estava arrependida de ter aceitado passar em Beveren aquela semana de férias. Viera de comboio, bilhete pago do meu bolso. Uma viagem longa, feita de noite, mas que chegou a ser interessante devido à novidade. Cheguei no domingo à tarde, dia vinte e três de julho. A minha partida seria feita pela mesma via, no dia trinta. Chegaria a Portugal no final do mês. Uma semana era razoável e não implicava com o resto das minhas férias grandes, teria muito tempo ainda para gozar a praia, as noites quentes e os dias luminosos. Só que, encerrada dentro das paredes daquele quarto imaculado, antecipei os sete dias que me aguardavam como a mais tenebrosa das sentenças de prisão, em que cada momento seria transformado num tempo infinito de embaraços e de concessões.

Não devia ter vindo. Não, não devia ter vindo, repetia, cinzelando as palavras na cabeça fatigada. Tudo o que via agora me irritava. A cómoda com autocolantes de florinhas nas gavetas, o cadeirão forrado de tecido, a arca sobre a qual havia uma almofada e um coelho em peluche, o conjunto de travesseiros, uns mais altos, outros mais baixos, de onde podia escolher o que mais me convinha, o roupeiro vazio onde arrumaria os meus trapos, a pequena mesa branca servida por uma cadeira da mesma cor. Tão perfeito... Tão artificial!

Escondi a cara nas mãos e suspirei. Não, não devia ter vindo. Estava fora daquele mundo ordenado do norte da Europa, desadequada aos seus padrões e aos seus costumes, desconfiada das suas exigências e dos seus preceitos.

Uma sensação crescente de pânico ameaçava paralisar-me. Depois de alguns minutos em que tentei me acalmar, levantei-me e decidi ultrapassar aquela provação com o meu melhor sorriso e toda a minha força de vontade.

Nos primeiros dias fiz passeios à cidade e pelos campos dos arredores quando me apanhava sozinha. Na verdade, era eu que me escapulia sorrateira, para evitar conviver demasiado com os moradores da casa. Fugia deliberadamente de Jean-Marie que, em abono da verdade, se ausentava muito e não procurava pela minha companhia. Tinha reuniões, explicara-me uma vez a sua mulher, ainda que eu não tivesse feito a pergunta, mas ela apanhara os meus olhares que o viam agarrado ao telefone, que notavam quando ele se despedia com um aceno breve e saía porta fora. Tinha assuntos a tratar, completava, e não desenvolvia o tema. Eu também não procurava saber mais.

As minhas caminhadas acabaram por ser benéficas. Diminuí a minha irritação e afastei os pensamentos sombrios. Ao reentrar em casa mostrava-me bem-humorada e feliz. Punha-me à disposição da Carmen, queria ser útil, queria, sobretudo, distrair-me para não me fechar na minha presunção. De noite, deitada na cama, chorava, sentindo-me a pessoa mais horrível do mundo por estar a ser tão ingrata com Jean-Marie de quem me afastava com pena, mas também com pressa e decisão.

Aqueles Dias de MaravilhaDonde viven las historias. Descúbrelo ahora