8.

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Na aula de português, o Paulo, que se sentava na fila do meu lado esquerdo, no mesmo lugar que o meu, a quarta carteira a contar da frente, começou a chamar-me.

– Psst!... Ei... psst!

Eu queria prestar atenção à professora que estava a dar matéria nova e fingi não escutá-lo. Mas ele insistia tanto que eu tive de lhe fazer a vontade. Contrariada, voltei a cabeça e sussurrei-lhe:

– O que foi?

O tampo de madeira das carteiras abria-se e no interior da estrutura existia uma pequena caixa metálica que servia para guardar livros, cadernos, outro material escolar. Nunca a usávamos, porque mudávamos amiúde de sala, as disciplinas eram dadas em espaços diferentes dentro do edifício e perdia-se tempo a guardar as nossas coisas que, ao fim de quarenta minutos tínhamos de recuperar. Mas quando olhei para o Paulo ele estava a abrir discretamente o tampo da sua carteira, a enfiar a mão lá dentro e a tirar uma coisa. Mostrou-ma colando-a à perna, disfarçando o gesto, a mão que a segurava suficientemente baixa para não alertar a professora do que estava a fazer.

O sangue fugiu-me do corpo. O baque fez-me vacilar e fiquei à beira do desmaio. O olhar turvava-se, os dedos das mãos ficaram dormentes, deixei de sentir as pernas.

A caderneta de cromos do mundial!!

Abri a boca.

O que eu vi primeiro foi o logótipo, o planisfério da Terra separado por uma bola de futebol branca e vermelha, depois as letras verdes onde se lia "Mexico86", tudo pegado. Por fim vi a mascote, a malagueta com um enorme sombrero trajada de futebolista, no centro, em baixo, entre as bandeiras dos países participantes. Fiz uma viagem à velocidade da luz por lugares onde antes tinha topado com o Pique, o nome da mascote. Vi-me a olhar para a vitrina da churrasqueira, para o reclame da Coca-cola, na vila onde passei as férias de verão. Vi-me na sala de espera do aeroporto da Cidade do México rodeada de cartazes a anunciar o país como o anfitrião do mundial. Vi-me a passear no centro de Puebla a pedir um sorvete de gelo aromatizado de ananás. Em todos esses momentos eu tinha olhado para a figura do Pique. Em todos esses momentos eu estava dentro do mundial.

A professora elevou a voz e pediu que nos voltássemos para a frente. Eu obedeci, atarantada, exangue, esvaída, num reflexo que me recolocava no tempo presente. O Paulo meteu a caderneta no interior da carteira. Mostrou-me o polegar, satisfeito. Notou a minha felicidade e ficou também feliz.

Os minutos passaram demasiado devagar, a aula nunca mais terminava. A minha impaciência cresceu até se transformar em raiva. Consultava o relógio de pulso de minuto a minuto, deixei de ouvir a professora, já não queria saber de nada daquilo, só queria ver a caderneta, abri-la, ver os meus amigos, dizer-lhes em silêncio que os adorava e que sentia umas saudades dilacerantes de todos eles.

Quando soou o toque de saída e a sala se encheu com o barulho de cadeiras a serem arrastadas, eu não reagi de imediato. Um torpor quente condicionou-me ao constatar que estava finalmente livre e que iria ter em breve a caderneta nas minhas mãos. Agora, temia abri-la, temia não conseguir suster a minha emoção e as minhas lágrimas, receava expor irremediavelmente o meu segredo.

O Paulo já estava lá à frente. Meti os cadernos e os livros dentro da mochila à pressa, fixando-lhe os passos para não o perder de vista. A Monique deu-me um toque e começou a falar comigo. Não a escutava, só via o Paulo a sair da sala, a ir para o corredor, a desaparecer. Pus-me em bicos de pés. Coloquei a mochila ao ombro.

– Estás a ouvir o que te estou a dizer? O que se passa, Tina?

– Tenho de ir ter com o Paulo. Espera.

Aqueles Dias de MaravilhaDove le storie prendono vita. Scoprilo ora