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Acordei às seis da manhã, vesti-me sem fazer barulho. Deixei um recado na mesa de entrada a contar que tinha ido passar o dia com amigas. Desculpei-me dizendo que me tinha esquecido de avisar, não especifiquei que amigas eram e saí de casa, fechando a porta devagar. Corri pelas escadas abaixo e corri os primeiros metros da rua. De seguida, acalmei-me, parei uns segundos para recuperar o fôlego e fui até à praça de táxis, situada na baixa. Não me cruzei com vivalma, era demasiado cedo para um sábado.

Antes de escolher um carro, sentei-me num dos bancos de jardim. Contemplei os barcos na doca para fazer tempo. Quando passava das nove fui à procura de uma pastelaria para tomar o pequeno-almoço.

Usava o vestido de Puebla. Era uma escolha errada de guarda-roupa para um jogo de futebol, mas ao abrir o armário deparei-me com este e achei que tivesse sido um sinal divino. Nunca mais o vestira e a peça foi ficando escondida, atrás de roupas mais quentes e mais adequadas para vestir para a escola. Com o início do verão, o vestido ressurgira. Vesti-o vaidosa, pus um casaco por cima, a madrugada estava fresca, coloquei a mala a tiracolo onde guardava o meu passaporte, a minha carteira com o bilhete de identidade e algum dinheiro, a chave de casa, o meu caderno, uma esferográfica, uma escova de cabelo, elásticos, a boneca mexicana de trapos e achei-me pronta. Achei-me mais do que pronta. Vi-me novamente como no México, sem ninguém que me pudesse conter, controlar ou deter.

Sempre que usava a pele da Cristina Velez das minhas férias mexicanas insuflava o ego e encarnava outra pessoa. Não se tratava de uma personagem, era mais a minha verdadeira faceta, quem eu me sentia ser ou que queria ser, naquele processo doloroso e maravilhoso do crescimento. Evitava ser essa rapariga em casa, na escola, junto da minha família ou dos meus amigos. Temia que não tivessem a maturidade suficiente para me aceitarem e que acabassem por me rejeitar. Podia ser uma Cristina demasiado aberrante, demasiado estranha.

Só embarquei para Itália no avião particular já passava das onze da manhã. Fui sozinha. Antes ainda enviavam o Carmando para me acompanhar. Depois de terem descoberto que me desenrascava sem levantar ondas, era entrar na aeronave, sentar, esperar, chegar e desembarcar, deixaram de se incomodar com a melhor maneira de eu fazer a viagem. Desde que chegasse ao destino e que Maradona ficasse contente, estava tudo bem. E, da minha parte, também não me incomodava. Até me sentia especial ao ter um avião que me servia, ao estilo de uma atriz de Hollywood.

Cheguei ao aeroporto de Linate, em Milão, depois das duas da tarde e estava esfomeada, com falta de forças e muito irritada. Conduziram-me a um automóvel e foi mais uma hora até à cidade de Bérgamo. O motorista e o homem que o acompanhava não falaram comigo, eu não falei com eles, fizeram o caminho todo a conversar entre si e eu, no banco de trás, definhava de fome.

A comitiva napolitana estava alojada num hotel nos arredores da cidade. Um enorme autocarro ultramoderno estacionava-se à porta preparado para recolher a equipa de futebol e os seus acompanhantes. O automóvel que me transportava contornou o edifício e parou junto às entradas de serviço. Era um sítio sombreado, sujo, com um recesso para os baldes do lixo e um depósito enorme de gás rodeado por um gradeamento. O motorista teve a decência de me abrir a porta. Indicou-me que entrasse no hotel e que perguntasse por Maradona.

Obedeci, um pouco desconfiada e a medo. Esperava que não fosse barrada por algum segurança antes de poder explicar-me e identificar-me como uma convidada do argentino.

Cheguei às enormes cozinhas, com pessoas que se afadigavam de um lado para o outro nas bancadas, nos fogões e nas pias. O meu estômago roncou quando o meu nariz se inteirou de uma miríade de cheiros deliciosos e perfumes apetecíveis. Entrevi uma bandeja com pequenos pãezinhos e roubei dois. Com dentadas rápidas devorei-os, continuando a andar. Atravessei uns corredores, empregados do hotel fardados passavam por mim e ignoravam-me, mas quando apareci num pequeno átrio, com umas casas-de-banho para a esquerda e uma galeria iluminada para a direita houve alguém que me chamou e perguntou, com um toque de insolência, quem era e o que fazia ali.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now