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Eram quase oito e dez da noite quando me resolvi a ir para a tal bancada exclusiva que o meu cartão, pendurado ao pescoço por uma fita branca, dava acesso. Este fora-me entregue por um homem qualquer da organização do jogo, não por Jean-Marie. Perdi-me do belga e desde que ele tinha sido amavelmente expulso da sala onde me encontrei com Diego, nunca mais lhe pusera a vista em cima. Estava nos balneários, supus, a preparar-se para o jogo, a equipar-se, a conviver com os seus colegas e, ainda assim, lembrou-se de mim, pois enviara o tal homem para me entregar o cartão.

Fiz como ele me tinha recomendado: escolhi um canto e esperei. A confusão aumentava e as passagens inferiores daquele estádio minúsculo, afinal era um recinto desportivo de província que servia um clube modesto, pouco imponente, com uma capacidade máxima para quarenta mil pessoas, enchiam-se mais e mais tornando-as atravancadas. Eu não me mexi do meu canto, mas chegou a um ponto em que se tornou incomportável manter-me ali sem ser incomodada. Quando comecei a levar encontrões fortuitos, as pessoas passavam demasiado perto e era inevitável um roçar de ombro, um encosto de braço ou um pontapé involuntário, achei que estava na altura de sair dali. Não fazia mais nada naquele sítio, era tão invisível quanto um pilar e nunca mais tinha visto algum dos jogadores, especialmente Jean-Marie ou Diego.

A estrutura vibrava à medida que os espetadores enchiam as bancadas. Do exterior vinha também o rumor típico das grandes multidões, o arrastar de centenas de pés, a deslocação de muitos corpos juntos, a cacofonia de diferentes vozes. Por cima do ruído abafado comecei a ouvir música, a celebração de um espetáculo de uma banda que tocava para entreter as pessoas que esperavam a festa futebolística. Não cheguei a assistir à atuação do grupo Gipsy Kings, que foi transmitida no grande ecrã do estádio. Ao querer sair daqueles subterrâneos efervescentes fui sendo sucessivamente barrada e placada, aguardava e avançava poucos passos, recuava e tentava outro caminho, naquele dédalo que parecia infinito.

Quando estava prestes a encontrar uma saída, descobri-a mostrando o cartão a um dos seguranças que me deu indicações sumárias, é por ali, menina, sempre em frente, sim, sempre em frente, comecei a ver alguns jogadores. Já vestiam o equipamento para o jogo. Os franceses envergavam as normais camisolas azuis, aqueles que alinhariam pela seleção do resto do mundo vestiam-se de verde e branco. À frente lia-se um apelo contra as drogas, em francês e em inglês, respetivamente. Abrandei os passos e estiquei o pescoço para ver se descobria Jean-Marie, mas acabei por chocar com Rinat Dasaev e dei um gritinho. Ele pousou em mim aquele seu olhar insondável.

– Assustei-te? – perguntou-me em inglês.

A voz era grave, perigosa. Estremeci, sem conseguir controlar as reações do meu corpo. Sentia a eletricidade que me ligava a ele, a atração impossível de contrariar, aquela fogueira que me queimava e que eu repelia, mas para onde mergulharia fascinada. Naquele momento, desejava fervorosamente que Rinat Dasaev, com modos bruscos e selvagens, me raptasse. Queria que me carregasse sobre um ombro e que me levasse a cavalo, através das estepes, para a sua tenda situada numa planície longe de qualquer civilização, à semelhança de um Miguel Strogoff, solitário correio do czar, como eu lera no romance imortal de Júlio Verne.

Ele olhava para mim à espera de uma resposta.

– Não... – murmurei.

Se Diego nos encontrasse, acabaria aos murros com o russo. Se Jean-Marie nos visse, estrangulava-o. E eu, idiota, tinha de parar de me encantar com qualquer um. Bem, o Dasaev não era qualquer um, era um guarda-redes competente e famoso que defendia as redes da seleção do seu país e que merecia a minha admiração. Certo, a minha admiração não significava o meu total deslumbramento ao ponto de criar situações complicadas que obrigassem os meus amigos a me defenderem a reputação. Estava a ser um pouco... leviana. Obriguei-me a mostrar-me indiferente.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now