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Jorge Valdano estava cada vez mais diferente. Custou-me reconhecê-lo. Ou não quis identificar no homem que sorria à minha frente, com os modos untuosos de um político traiçoeiro e a simpatia forçada de um aristocrata perante a plebe, o Jorge Valdano que eu conhecera havia dois anos, no México. Estava zangada por aquela viagem não ser aquilo que esperava que fosse. Tantas horas de comboio para ir simplesmente a um estádio ver um jogo de futebol! Para que raio conhecia eu pessoalmente futebolistas de gabarito mundial? Era para ter privilégios. Naquele dia não me sentia tão privilegiada e cozinhava uma pequena raiva em lume lento que me agastava.

Perguntou-me se fizera boa viagem, resmunguei que sim. Notou o meu mau humor e limpou o sorriso do rosto. Ele não tinha culpa de estar desagradada com a oferta que me tinham feito, nem quis dar explicações para justificar-me ou queixar-me. Para mais, perdia toda a razão ao ter aceitado o que me davam. Se não gostasse, nem sequer devia ter-me posto a caminho. Era ter ficado em casa e pronto. Pedi-lhe desculpas, estava cansada, foram muitas horas e tinha acordado cedo. Recuperou o sorriso e disse-me que compreendia.

Perguntou-me se queria tomar um duche e mudar de roupa, no seu gabinete tinha uma casa-de-banho com um chuveiro que podia utilizar. Corei ao imaginar-me despida no gabinete de Jorge Valdano, toda uma série de imagens impúdicas povoaram-me a mente. Acabei por aceitar. Precisava de limpar o suor do corpo para me sentir melhor.

Ele esperou na sala onde ficou a conversar com a sua secretária. Eu demorei qualquer coisa como quinze minutos. Levou-me, a seguir, para uma cafetaria com self-service idêntico ao que havia na cantina do liceu. Agarrei num tabuleiro, servi-me de uma sandes, bolos, fruta, pedi um café com leite, uma garrafa de água. Foi ele que pagou tudo, pois eu fazia sempre o mesmo. Ia para o estrangeiro só com escudos no bolso! Pensei na recomendação de Jean-Marie para que eu pedisse fatura dos bilhetes de comboio. Tinha-me esquecido, então não podia reaver esse dinheiro. Paciência. Seria o meu investimento naquela aventura.

Comi enquanto ele me ia contando como iria acontecer. Ficaria sempre com ele, veria o jogo desde a bancada VIP do Real Madrid, podia ir cumprimentar o Pfaff no intervalo, ele levar-me-ia até aos balneários para esse encontro breve. Regressava para a bancada para ver a segunda parte, o prolongamento e os penáltis, se houvesse um empate no final do tempo regulamentar. Faria a viagem de regresso a Portugal num avião particular que tinha fretado e que me levaria diretamente ao aeroporto da minha cidade. Ainda assim, chegaria de madrugada e não havia nada que ele pudesse fazer.

Descasquei devagar a banana, a pensar no pormenor do avião.

– Esse avião... é de alguém famoso? Um futebolista, um ator...? – indaguei. Dei uma dentada na banana e mastiguei devagar.

– Bem, se considerares os dirigentes do clube como pessoas famosas... então, sim. O avião é usado por gente ligada ao Real – respondeu-me. Sentava-se à minha frente, unia os dedos das mãos sobre o tampo. Tinha bebido um café e colocara o tabuleiro com a chávena suja de lado.

– Ah... e eles não se importam? Quero dizer, eu não sou ninguém ao pé desse pessoal tão... importante.

– Não, não se importam, porque meti a requisição a tempo.

– Requisição... – Ri-me. – Parece que estou na minha aula de documentação e legislação comercial.

– A parte administrativa do clube é muito organizada, Tina. Não se faz nada sem a papelada necessária. Há quem ache que é burocracia a mais, mas precisamos de ter um registo preciso do que se faz cá dentro, para termos uma organização credível.

Recostei-me na cadeira. Sim, Jorge Valdano estava definitivamente diferente. Nutria uma outra personalidade deliberadamente, fazia por se sentir confortável naquela pele. Adotava um novo léxico, uma nova postura, uma nova aura. Distanciava-se do seu eu anterior agradado com a metamorfose. Havia o passado, e ele jamais o renegaria, de jogador de futebol que alcançara a proeza magnífica de ser campeão do mundo, mas era, naquela fase de renascimento, um apontamento no seu currículo que o orgulhava. Semicerrei os olhos. Seria assim tão fácil arrumar o passado? Eu tinha imensas dificuldades em fazê-lo.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now