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O meu pai reparou que eu estava ao telefone. Perguntou, furioso:

– Quem é?

Estendi-lhe o auscultador.

– O telefone tocou – expliquei e nem sei como consegui soar tão calma e controlada. – Quando tocou a segunda vez vim atender, podia ser alguma coisa urgente. É a minha correspondente belga, a Hélène. Queres falar com ela e comprovar? Ela só percebe francês.

– Vais falar em francês?

– Sim, pai.

– Hum... está bem.

A minha mãe chamava-o para que a fosse ajudar a arrumar as compras, ele sentou-se no sofá e abriu o jornal. Agitou as folhas como que a sacudi-las de pó. Estava muito zangado.

– Despacha-te – pediu. – A tua mãe precisa de ajuda na cozinha. Vais fazer o jantar com ela, depois de tratares das compras.

– Sim, serei rápida.

Abri um sorriso falso.

– Hélène, vou ter de ser rápida, está bem? Um minuto! Desculpa.

"Está bem, eu percebo. Recebi o teu recado em março e tenho me mantido discreto. Preciso saber o que se passa, mas um dia vais contar-me, que eu sei. Não poder falar contigo, nem sequer poder escrever-te uma carta está a dar comigo em doido! Já não bastavam os meus problemas... ainda tinha de me apoquentar contigo. Não mereço... Claramente que não mereço isto! Mas vou ter de aguentar, que remédio me resta, pois uma amizade é feita de coisas boas e de coisas más."

Respondi animadamente:

– Ah, Hélène! Sim, recebeste a minha carta com o meu número de telefone!

"Bem, vamos ao que interessa, já que temos de ser rápidos."

– Sei, sei, claro que sei!

"Hum... porque não podes falar. Compreendo."

– Certo.

"Tens uma viagem marcada para a sexta-feira, dia vinte de maio. Regresso no dia vinte e quatro. E não me vais dizer que não!"

– Ah, não vou?

"Não, Cristina. É uma festa, vamos a uma festa muito especial."

– Sim?

"Tens de estar no aeroporto às dez da manhã do dia vinte de maio e levantar o bilhete no balcão da companhia aérea. É a mesma de sempre. O resto do procedimento já sabes. Ah, a viagem é para Paris, França. Como não podes falar, não te vou explicar mais. Vais ter de faltar à escola na segunda e na terça. São só dois dias e acho que não vai fazer mal. A Carmen ainda tentou meter-me juízo na cabeça e não te envolver nisto... Deixa-a, a miúda está com problemas em casa. Mas quando descobrisses o que vai acontecer, se eu não te tivesse dito nada, os estragos seriam bem maiores. Ficavas a odiar-me e eu dava-te razão. Por isso, vamos desobedecer, queres? Vamos entender esta... festa como o encerramento formal da época 1987, 1988 que não é propriamente memorável."

O anúncio deixou-me sem chão. Noutra ocasião teria ficado muito contente com a perspetiva de uma viagem, nas circunstâncias atuais colocava-me um desafio terrível, para não dizer impossível. A minha mente esvaziou-se. Era incapaz de traçar um cenário. Ir ou não ir, obedecer ou desobedecer. Tudo era um gigantesco negrume que me tragava, torcia e desfazia. Engoli em seco.

"Estás aí, Tina? Percebeste o que eu disse?"

– Claro. Eu percebo... – murmurei.

"Conto contigo, Cristina. Sei que não me vais falhar nesta. Estarei no aeroporto de Orly à tua espera. Boa viagem! Au revoir."

Pousei o auscultador. Os meus joelhos tremiam. Dei um salto e corri para a cozinha. Quis estar animada com a possibilidade de uma viagem em breve, mas as minhas energias eram nulas. Se deixasse o corpo comandar-me, em vez da cabeça, arrojava-me para o chão, desfalecida.

O que fazer? O que podia fazer? Vinte de maio era já dali a um par de dias. Socorro! Sim, precisava que me socorressem, que me salvassem. A minha situação era desesperada. Guardava um segredo que se começava a notar e que eu queria teimosamente manter afastado da luz do dia e da curiosidade dos meus familiares, dos meus professores e dos meus amigos. O meu mundo dividido ameaçava desmoronar-se e as realidades iriam misturar-se. E depois, entre os escombros, teríamos sobreviventes, feridos e até mortos.

Aceitei a incumbência de descascar batatas depois de ter guardado os diversos pacotes e as latas nas prateleiras da despensa. Continuava concentrada no meu problema e acabei por cortar o polegar. Nem dei por isso. Despertei assustada com o grito da minha mãe e só depois vi o fio de sangue a escorrer-me do dedo para a batata meio pelada e a pingar na água da vasilha onde estavam as outras batatas. Ela arrancou-me a faca, agarrou-me na mão e colocou-a debaixo da água da torneira. Enviou-me para a casa-de-banho, vai desinfetar a ferida e pôr um penso rápido, não descascas mais batatas, sempre na lua, esta rapariga. Sempre na lua!, censurava, a despejar a vasilha para lavar os tubérculos manchados de sangue.

A solução era simples. Aliás, para qualquer problema intrincado as melhores opções eram sempre as resoluções diretas. Tinha de fugir de casa!

E foi o que fiz. No dia vinte de maio de 1988 fugi de casa.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now