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As festas passaram depressa. O Natal foi na casa da minha tia Marília que tinha sido mãe havia pouco tempo – estivera grávida no verão e mal privara connosco para se manter resguardada, era uma gravidez de risco. Soubemos que o meu tio Luciano podia estar muito doente, mas sempre que tentava escutar o que conversavam sobre a sua condição e as preocupações que a minha mãe partilhava com as irmãs, desviavam o assunto e falavam doutras coisas. Magoaram-me, porque eu já não era nenhuma criança. Não era uma adulta, mas tinha maturidade suficiente para perceber o que se passava e acrescentar uma opinião positiva. Como não me queriam contar nada, fiz por afastar de mim o suposto problema de saúde do meu tio e aproveitei o tempo para brincar com os meus primos e viver a magia do Natal. Ou seja, já que não me queriam como pessoa crescida, divertia-me como pessoa pequena e não sentia quaisquer remorsos por me despromover dessa maneira.

A passagem do ano ficou marcada para a casa da minha tia Sara, uma reunião de família para comer e beber. Foi só nesse último dia de dezembro que me apercebi que o ano de 1986 iria acabar à meia-noite. Deprimi-me. De repente, não quis que aquele ano terminasse nunca. Fora imensamente feliz, conhecera pessoas fantásticas, tornara-me noutra Cristina, uma rapariga que guardava ciosamente dentro de mim e que não podia mostrar a ninguém, porque aqueles que me rodeavam não tinham a capacidade para perceber quem eu era e em quem me queria tornar.

À medida que os minutos passavam, que as horas se escoavam e a meia-noite ficava mais próxima, a minha agitação aumentava. Um mal-estar debilitante inquinava-me a alma e refletia-se no estômago, fiquei com azia e com dor de barriga. Entristeci. Emudeci. Já não me apetecia estar ali, mas tive de aturar o barulho da festa e sem me queixar. Num momento de exasperação, perguntei à minha mãe quando é que nos íamos embora e ela tinha-me enxotado, irritada, pedindo-me para não atrapalhar. Resolvi não lhe perguntar mais nada e seguir o seu conselho. Não iria atrapalhar.

Os adultos bebiam muito e conversavam alto, rindo-se boçalmente. As crianças refugiaram-se num quarto a brincar com um jogo de tabuleiro, com o meu irmão a liderar a pequena hoste. Afastei-me de todos, miúdos e graúdos. Na casa da minha tia Sara não havia livros para ler e sentei-me na sala, entediada até à medula, cara fechada, a ver o programa cretino do fim do ano.

As garrafas de espumante foram tiradas da arca frigorífica faltavam cinco minutos para a hora feliz em que o ano mudava. Dizíamos adeus a 1986 e dávamos as boas-vindas a 1987. Eu saí da sala, enfiei-me no quarto dos meus tios. Não acendi a luz.

No escuro deitei-me na cama, de bruços. Escondi a cara nas mãos. Desatei a chorar à medida que escutava a cantoria, no quintal da casa onde os adultos festejavam a transição de ano, que fazia a contagem decrescente do tempo.

Era como se 1986 estivesse a ser arrancado de mim. Tinha-o entranhado na pele, enrolado nos músculos, fazia parte de cada órgão interno, distribuído em porções vivas que, todas reunidas, formavam uma entidade completa. Essa entidade não era apenas física, era também etérea, livre e solta, memórias sopradas que pincelavam o meu espírito com imagens do que tinha acontecido. Esse era, para mim, o ano de 1986 que morava comigo.

Perdê-lo era doloroso. Largava-o involuntariamente e, no meu estado de desnorte, ordenavam-me que o esquecesse. Exigiam que olhasse para o futuro. Havia 1987, um ano novinho a estrear, cheio de promessas, podia repetir os bons momentos que tinha passado no ano que esmorecia, morto, que era preciso abandonar porque era já cadáver. Havia que se fazer o funeral e o enterro. Mas eu não queria largar 1986. Doía-me. E chorava mais.

À meia-noite, as rolhas das garrafas de espumante saltaram, entre berros e tilintar de copos. Eu calei o choro. Estava feito. O ano do mundial de futebol no México era definitivamente passado. Sim, passara. Terminara.

Sentei-me na cama. Limpei a cara com os dedos, funguei, inspirei fundo. Fim.

Estava em 1987.

Olhei por cima do ombro, como se com esse virar de cabeça pudesse vislumbrar o que fora obrigada a descartar, por única e exclusiva observância da mecânica do universo. O passar do tempo inexorável que eu, na minha humana fragilidade, não podia contrariar. Ali, no escuro, por detrás do mundo que girava sem parar, estava 1986, um jogo de futebol, uma carícia de Jean-Marie nos meus cabelos, o sorriso encantador de Diego, o calor e os gelados, as vitórias, as derrotas, os golos, a taça dourada erguida em triunfo, a história toda contada no meu diário, no meu caderno. Estava eu, feliz, confiante, saudável, risonha a dar o primeiro passo para ser a nova Cristina Velez.

Não precisava de ter medo. Teria outros sonhos no novo ano que começava.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now