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Escusado será dizer que não cheguei a ir à Alemanha, no final de julho, para ver o jogo da supertaça que opôs o Bayern de Munique ao Hamburgo. E só tive conhecimento desse jogo através de um recorte de jornal que veio numa segunda carta de Jean-Marie, com carimbo dos correios de agosto. Primeiro fiquei furiosa e triste. Ele não me tinha telefonado, não me tinha convidado para ir até à Alemanha ver o jogo! Depois, acalmei-me. Ele podia ter telefonado, mas não estava ninguém em casa por causa das férias e não havia maneira de me contactar de outra forma. Por fim, sosseguei ao perceber, pelos sublinhados na notícia de que não tinha jogado.

O Bayern ganhara por duas bolas a uma e arrecadara mais esse troféu.

Os restantes recortes falavam das contratações das equipas que preparavam a nova época com um plantel reforçado de futebolistas que se tinham destacado na época anterior, ou mesmo no mundial do ano passado. Foram esses os pedaços de jornal que me cativaram mais a atenção.

Jean-Marie fizera um excelente trabalho, organizando as notícias, colocando em cima as mais interessantes e as que motivaram textos maiores por parte dos jornalistas. Ele conhecia os meus gostos, ou esforçava-se para atendê-los e isso era enternecedor.

A grande transferência tinha sido protagonizada pelo jogador internacional brasileiro António Careca que ingressara no Napoli. Depois era a de Enzo Scifo que trocava o Anderlecht pelo Inter de Milão. Jose Luis Brown fora contratado pelo Real Murcia espanhol e os dois irmãos mais novos de Diego, Raul e Hugo, iriam estrear-se em campeonatos europeus, o primeiro no Granada de Espanha, e o segundo no Ascoli de Itália. Na verdade, Hugo tornara-se jogador do Napoli (estremeci ao imaginar os dois Maradona juntos!), mas fora imediatamente emprestado ao Ascoli para não ofuscar, como se isso fosse possível, a posição do irmão Diego no clube do Sul. Fiquei informada de que Julio Olarticoechea tinha tido um desempenho instável no Nantes, onde jogou com Burruchaga – só agora é que sabia disso! – e que fora transferido para o Argentinos Juniores, regressava à sua terra natal, portanto, e que o belga Vercauteren fora contratado para o clube francês. Daniel Passarella renovara o contrato no Inter de Milão, o mesmo acontecera com Pedro Pasculli, pelo Lecce.

Fazendo uma análise ao conjunto dos recortes, que espalhei na minha secretária, a Serie A italiana estava recheada de estrelas futebolísticas, reforçando o seu estatuto de campeonato mais difícil e competitivo do mundo. Os outros campeonatos eram mais modestos e discretos, especialmente o alemão, que se geria com a prata da casa. Havia outras novidades, com outros jogadores, mas não estavam sublinhadas e eu não compreendia o que diziam. Por isso, descartei-as.

Fiquei a pensar nos irmãos de Diego, na família de Diego. Já me tinha cruzado com o pai e com o sogro, fiz por evitá-los no México para não arranjar problemas; conhecia a mulher Claudia e a irmã Maria; havia aqueles dois irmãos que também jogavam futebol e haviam outras irmãs pelo que ele me tinha contado; existia agora a pequena Dalma, sua filha; faltava-me conhecer a mãe de quem tanta gente falava como sendo uma matriarca forte e adorável. Comecei a imaginar o meu reencontro com Diego, voltar à sua casa e integrar-me naquele clã enorme que ainda contava com uma mãe napolitana, a senhora Rispoli. Tinha ainda Jean-Marie e a sua casa cheia de mulheres. Gostava de famílias grandes, a minha era uma família grande, via a minha experiência no México, junto de belgas e de argentinos, como uma reunião familiar onde se improvisaram os laços entre as pessoas, onde se cultivou a afinidade, onde, no fim, eram todos parentes devido às circunstâncias e não à ligação de sangue. Era uma boa maneira de recordar o mundial. Eu até tinha sido a prima do massagista belga Jacques Blanche!

Muitas vezes tive a tentação de ir à caixa secreta e resgatar o caderno com o meu diário mexicano, mas resisti, fui firme e mantive-me longe desse relato que se me poderia deixar feliz, também me iria fazer sofrer com uma nostalgia afiada que me esgravataria a alma sem piedade.

A nova caixa precisava de tornar-se maior para guardar a quantidade de coisas com que já a tinha fornecido. Remexia no seu conteúdo e orgulhava-me daqueles tesouros, pedaços da minha vida secreta, momentos extraordinários. Fazia-os todos meus, mesmo aqueles que não tinha presenciado, como o jogo da supertaça alemã. Jean-Marie não tinha jogado, certo, imaginei que estivesse lesionado ou que fora poupado por opção do treinador, mas via-o no banco a torcer pela vitória do seu clube e via-me a mim a assistir a esse jogo, nas bancadas, a comemorar depois com os jogadores nos balneários que me estavam vedados, mas onde eu entrava em pensamento, para pular e gritar e levar banhos de água morna e de champanhe.

Era assim que preenchia os meus sonhos das noites naquele verão. Inventava dias diferentes daqueles que vivia, colocava-me mentalmente numa existência paralela e acordava no dia seguinte bem-disposta. Feliz. Falsamente feliz. Ou se calhar, verdadeiramente feliz. A indefinição fazia parte da tempestade pessoal.

Para ser honesta, dava-me conta de que eu era abençoada por ser amiga de belgas e de argentinos e por ter conseguido manter essa amizade mesmo longe deles, mesmo sem a magia de um mundial e da família forjada nesse ambiente único, da qual eu fazia orgulhosamente parte, mesmo com todos os meus impedimentos, desde a idade à falta de dinheiro, às mentiras, enganos e dissimulações, à fome, ao frio, ao tédio monumental das longas horas de espera e das viagens demoradas.

Por isso, tinha de ser feliz com o que tinha.

No entanto, eu adorava fixar-me no que não tinha.

E naquele verão não tinha Jean-Marie, não tinha Diego, não tinha mundial. E foi um verão que eu quis esquecer. 

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora