98.

13 4 26
                                    


Paguei a viagem a Munique do meu próprio bolso. Tinha feito umas economias, pedi um adiantamento da mesada ao meu pai e comprei a passagem para a Alemanha no balcão da companhia aérea que ficava na rua da baixa. Foi um balúrdio, até me custou gastar tanto dinheiro de uma vez, mas lembrei-me a razão de estar a cometer aquele assassinato à minha carteira e esqueci os muitos zeros do talão que me apresentaram.

O horário da viagem seria de manhã cedo, às sete, que era quando havia voo de Faro para Munique, que se repetia sempre à mesma hora, durante todos os dias da semana menos ao domingo. O que queria dizer que teria mesmo de dormir no aeroporto para poder apanhar o avião de volta. Estava ótimo para mim! Viajaria para a Alemanha na quarta-feira, dia dezanove de abril, regressaria na quinta-feira, dia vinte. Ainda conseguia ir às aulas da parte da tarde. Esperava que não estivesse demasiado ensonada ou aborrecida, dependia do resultado do jogo e da eliminatória.

Jean-Marie propusera, sem grande convicção, digamos, pagar-me a viagem. Eu recusei e disse-lhe que não falássemos mais nisso. Depois propôs arranjar-me a casa de uns amigos para eu passar a noite, em vez de ir para o aeroporto. Recusei mais uma vez. Ele hesitou, mas resolveu não insistir ao ver-me tão determinada. Os meus dezassete anos, a minha experiência naqueles percursos, provavelmente a sua pouca paciência naquele dia contribuíram para que tivesse aceitado as minhas ideias. Se eram boas ou más, péssimas, lamentáveis, se me meteria em sarilhos, isso logo se veria. Nem eu, nem ele, quisemos aprofundar a questão e ficou assim.

Ele iria chegar na terça-feira, se não fosse na segunda, ainda estava na dúvida, dependia da disponibilidade de um ex-companheiro do Bayern que lhe iria dar casa. Combinámos encontrar-nos na quarta-feira à hora do almoço, depois ficaríamos sempre juntos até que ele me deixasse no aeroporto, a seguir ao jogo.

Esse lado da viagem estava tratado e encerrado. Quanto ao lado que dizia respeito aos meus pais também foi fácil de tratar e de encerrar, para meu espanto. Anunciei que ia fazer uma viagem curta à Alemanha, estávamos a regressar de Lagoa depois de termos ido a um jantar de família que assinalou a Páscoa. O meu pai, que conduzia, não tirou os olhos da estrada, mas a minha mãe voltou o pescoço para mim e fez-me uma série de perguntas curtas. Quando, quanto tempo, com quem, o que ia fazer. Também dei respostas curtas. Dia dezanove de abril, era só esse dia, com o meu correspondente alemão, ia ver um jogo de futebol. Meias verdades sempre me tinham servido. A minha mãe calou-se, pensativa.

Cheguei-me à frente para fazer o anúncio, enfiei a cabeça no espaço entre os bancos dianteiros e falei. Uma vez o anúncio terminado, voltei a recostar-me no assento, sentindo-me subitamente cansada e mole. O carro rolava devagar na estrada e havia pouco trânsito àquela hora, perto da meia-noite. O meu irmão dormia de boca aberta encostado à janela. O silêncio era negro e denso, como a paisagem opaca do lado de fora. A luz fraca dos candeeiros que bordejavam a estrada não era suficiente para fender a escuridão. O mundo em suspenso, adormecido, parado...

– É outra vez o namorado mexicano?

A pergunta do meu pai reverberou no ar. Apertei as mãos uma contra a outra sobre os joelhos.

– Não, pai – respondi.

– Vais ver um jogo de futebol.

– Sim, vou. Mas não é o meu namorado mexicano. É o meu correspondente alemão com nome francês. Lembras-te dele? Ele continua a escrever-me. Tu vês as cartas que apanhas na caixa de correio.

– O João-não-sei-quantos?

– Sim, esse mesmo. Ele convidou-me para ir até à Alemanha. O Massimo de Nápoles, o meu correspondente italiano, também vai ver o mesmo jogo e combinámos ver-nos nesse dia. É uma ocasião especial, é um jogo especial.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now