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Na quinta-feira a seguir ao regresso da visita de estudo, faltei às aulas. Sentia-me exausta da viagem. Resolvi dormir de manhã e, na tarde, passar por uma farmácia para comprar umas gotas oftálmicas que me aliviassem os olhos, que continuavam demasiado sensíveis para as lentes de contacto, e ainda mandar revelar as fotografias. Fiquei possessa quando as recebi, porque estavam quase todas estragadas, mais propriamente desfocadas. Era da máquina, uma velharia dos anos 70 que pertencia ao meu pai que nem sequer tinha flash incorporado e não permitia que se tirassem fotos em ambientes com pouca luz. Não tinha outra, usava aquela para captar os momentos inesquecíveis da minha vida, mas quando vi o resultado da revelação, quando percebi que as minhas memórias da visita de estudo estavam irremediavelmente perdidas – aquelas imagens pouco nítidas e de cores baças eram patéticos exemplos de fotografias que se queriam para, mais tarde, identificar as pessoas, os lugares e as situações – chorei de raiva. Fechei o envelope que me entregaram na loja, enfiei-o na mala sem qualquer cuidado e regressei triste a casa.

A preguiça atacava-me e, embora tivesse tentado dormir qualquer coisa antes do jantar, depois de um banho quente que me deixou molenga, não consegui. Abri um livro, comecei a estudar para a prova geral de acesso, mas era incapaz de me concentrar. Desisti. Estendi-me no sofá da sala com a televisão apagada. Entrelacei os dedos das mãos sobre o peito, fixei os olhos no teto branco. Aproveitei o silêncio, já que não estava mais ninguém em casa a não ser eu. Pus-me a pensar nos dias maravilhosos passados com a minha turma.

A viagem correra muito bem, melhor do que tínhamos antecipado no início do ano, quando a incerteza atacava e havia aquelas confusões com os colegas que resolveram amuar e sabotar a nossa segunda visita ao Porto. Tivemos a componente pedagógica, com visitas a empresas e à bolsa de valores, e tivemos a componente lúdica. A professora São mostrou-nos marcos icónicos da cidade, como os jardins de Serralves, a rua das lojas de Santa Catarina e a Sé velha. No caminho de volta, com um calor enorme a lembrar o verão, ainda conhecemos o Portugal dos Pequenitos em Coimbra. Nas horas livres, visitámos o centro comercial e fomos às compras. Aproveitei para comprar roupa, a Maria encheu-se de postais do James Dean, o Adriano comprou um cachecol do seu clube, o Futebol Clube do Porto. Nas noites, regressámos ao bar, nunca mais fomos à discoteca onde encontrámos os jogadores, e aproveitámos a música ao vivo, com muito alarido e contenção no álcool. Descobrimos que nos divertíamos mais se moderássemos o consumo de bebidas e toda a gente, sem que tivesse havido uma imposição ou recomendação, alinhou em beber apenas cerveja e refrigerantes, sem exagerar. Cantámos muito, chorámos, sabíamos que o nosso convívio estava no fim. Tirámos um monte de fotografias, algumas foram logo reveladas pela professora São ainda no Porto – a máquina era do Sílvio. Ficámos muito vaidosos porque estavam todas ótimas. Mostravam-nos como um grupo feliz, adulto, responsável e engraçado. Foi magnífico, como haveria de dizer o nosso colega Élio, sempre tão espirituoso, que já não nos acompanhava por ter desistido no décimo primeiro ano. A Lídia resumiu o sentimento de todos ao declarar, no autocarro, quando atravessávamos a serra que separa o Alentejo do Algarve e já nos aproximávamos de casa, "Parecemos uma família!". Caiu um pequeno silêncio que o Ricardo interrompeu imediatamente com palmas. Todos o imitaram e aplaudimos a frase da Lídia. Éramos, de facto, uma família.

Sorri com todas essas recordações boas! Que podiam ser melhores se o raio das fotografias que eu tirara não se tivessem estragado, pensei, a reacender a raiva. Respirei fundo. Não adiantava nada apoquentar-me com aquilo, pois era impossível de remediar... Mas que me irritava, irritava! Resmunguei, rosnei, fechei os punhos, voltei a resmungar. Iria pedir... não! Iria exigir ao meu pai, naquele mesmo dia, não passava de hoje, uma máquina fotográfica em condições. Todos os meus amigos tinham máquinas modernas, só eu andava com aquela relíquia saída do museu. Era embaraçoso, transtornava-me, beliscava-me o amor-próprio! Em vez de me terem oferecido panos e outras inutilidades para um enxoval que eu jamais usaria, preferia que no meu aniversário me tivessem dado uma máquina fotográfica. Claro que teria de moderar o meu discurso, mostrar-me mais comedida enquanto exporia os meus argumentos. Teria de convencer o meu pai da justeza da minha exigência, que disfarçaria de pedido, com o meu melhor palavreado, no tom correto. Podia usar como exemplo a máquina de escrever. Tinha sido um excelente presente que continuava a usar com alguma frequência. Um excelente exemplo, concordei de mim para mim, a gizar a estratégia para logo, à mesa do jantar. Uma máquina fotográfica era cara, mais ou menos do mesmo preço que uma máquina de escrever, provavelmente custaria menos do que uma máquina de escrever, mas era um presente tecnológico e a tecnologia pagava-se bem. O meu pai apreciava que os seus investimentos tivessem resultados visíveis. Comprara-me a máquina de escrever, percebia que eu escrevia, nunca me fez perguntas sobre o uso que lhe dava. Se me fosse comprar uma máquina fotográfica, teria de o convencer que seria tão utilizada quanto a máquina de escrever. Era isso... basicamente, era isso...

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now