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– Está no mundo da lua, olha só...

– Está completamente apaixonada!

A Monique e a Marta riram-se uma para a outra, cúmplices. Eu não lhes respondi e elas prosseguiram na sua análise, a fingir que eu não estava ali. E para dizer a verdade, não estava mesmo...

– Sim, deve ser isso. Está apaixonada.

– Por quem?

– Deve ser o tal rapazinho que está no estrangeiro... ah, não sabes, Marta? A Tina vai muitas vezes para o estrangeiro. Quando falta às aulas é porque está na Alemanha, em Itália, em Espanha... Desta vez, esteve em Itália. Trouxe-me um pacote de massa. Pasta! É assim que se diz, em italiano. Pasta – repetiu. – A minha mãe agradece a lembrança, Tina. Hoje vou comer massa italiana. Junta-se molho de tomate e já está.

Tinha comprado o pacote de massa na loja do aeroporto de Malpensa, em Milão, pouco antes de embarcar para Lisboa. Lembrara-me que ainda não tinha comprado nada para a Monique. Então, escolhi um pacote de massa que pude pagar com um punhado de liras que trouxera comigo, fora o Rino que mas dera, o troco do nosso almoço do dia da visita ao museu. Contei-as, eram à conta e estava feito. Foi o pacote mais barato da loja que tinha artigos caríssimos, com preços de muitos zeros, perfeitamente expostos debaixo de luzes que os tornavam luxuosos, ainda que a maioria fosse comida vulgar, como massa. Pelos vistos, A Monique gostou da prenda, ao ponto de a designar pomposamente como o jantar daquela noite. Ou provavelmente odiara-a e queria comê-la depressa para esquecê-la...

A Marta fez aquela cara de espanto ingénuo que lhe era típica. Qualquer coisa a deixava pasmada e ansiosa, como se estivesse constantemente a descobrir o mundo.

– Oh... A Mónica está a falar a sério, Tina? Tens um namorado?

– Um namorado estrangeiro... e secreto – acrescentou a Monique. – Nunca me disse como se chamava, nunca me mostrou uma fotografia. Podes tentar, Marta. Pergunta-lhe lá quem é o namorado secreto...

– Quem é o teu namorado secreto, Tina?

Fiquei em silêncio. Claro que não iria responder, nem sabia se podia considerar Diego como um namorado. Ele não era um homem teoricamente solteiro e o que acontecia entre nós era esporádico e nada assumido. Era até escandaloso por causa da minha idade, embora no jantar da família Giuliano me tivesse apercebido que era normal as raparigas se casarem antes da maioridade, aos dezasseis e aos dezassete anos, pelo menos entre os napolitanos daquela classe social. Não quis empregar a palavra máfia ou camorra, parecia-me demasiado violenta, já que teria de assumir interiormente ter estado a conviver com mafiosos.

Continuei em silêncio também porque estava zonza. Era o primeiro intervalo da segunda-feira de manhã e a sensação que tinha era de que não me encontrava ali, totalmente desligada do meu corpo e do mundo físico.

– Vês? Ela nunca responde! – disse a Monique triunfante. – Eu já tentei tantas vezes, tantas vezes...

– E porque é que ela não conta sobre esse namorado?

– Não sei, Marta. Que a Tina está apaixonada, isso é mais do que óbvio. Nota-se pela maneira como age depois de regressar dessas viagens. Fica assim durante uns dias, com este ar de morta-viva, depois recupera o ânimo e volta a ser a Tina de sempre. Se queres que te diga, não gosto da Tina apaixonada. Parece uma alforreca.

A Marta riu-se.

– Ah, não digas essas coisas. Coitada da Tina...

No domingo não me tinham deixado descansar. Quando cheguei a casa no sábado, passava pouco das nove da noite. Os meus pais não me disseram nada, nem se puseram com perguntas sobre a minha estadia na casa milanesa da Milena, ironicamente eu acabava de chegar de Milão, mas a minha mãe sentenciou que iríamos visitar a minha avó materna que caíra doente e que me iria levantar cedo na manhã seguinte. Às oito horas já tinha de estar despachada e pronta para sair. Tentei argumentar que estava muito cansada, de Milão fora para Lisboa e viera de autocarro numa viagem horrorosa e enjoativa de mais de três horas. A minha mãe não quis saber. Vamos para Lagoa e está falado, rematou. O meu pai fixava-me uns olhos desconfiados por cima do jornal que lia, o meu irmão tinha um ar assustado, o que significava que tinha havido conversas em casa sobre a minha ausência, e engoli a minha revolta. Acatei a ordem e no domingo acordei às sete da manhã, inerte e vazia, mas disposta a não protestar e a fazer tudo o que me mandassem.

Aqueles Dias de MaravilhaWhere stories live. Discover now