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O final do mês de agosto daquele ano ficou definitivamente marcado pelo folhetim Maradona. Chamava-o assim, mas o apodo não era original, uma criação minha. Ouvira-o de passagem de um jornalista português que comentava todos os dias os últimos desenvolvimentos do diferendo que opunha Diego ao Napoli e achei-o apropriado. O que eu via na minha televisão, que também devia passar nas televisões de todo o mundo, que fazia cabeçalhos nos jornais e era apontamento constante nos blocos noticiosos radiofónicos, era uma autêntica novela com um guião errático que se destinava apenas a baralhar um público ávido por sentimentalismo barato.

Apesar de eu conhecer as intenções de Diego de deixar o Napoli desde maio não evitei ficar angustiada, ferida e perplexa. As informações que me chegavam eram dispersas e confusas, achei até que era feito de propósito para que se gerasse uma onda de contestação e de ódio contra Maradona. Foi nessa altura que descobri, com uma indignação que tinha tanto de fúria como de desnorte, que os jornalistas portugueses o detestavam e que não escondiam o seu desprezo. As reportagens que via na televisão portuguesa, que acabavam por ecoar, de forma resumida no rádio – as estações nacionais partilhavam a mesma linha editorial – eram na sua esmagadora maioria acusatórias e vexatórias.

Procurei levar os meus dias com a normalidade possível dentro dessa tempestade que não podia revelar que me afetava. Encontrava-me com a Marta para idas à praia e passeios na baixa, onde reencontrávamos os colegas para um café. O mês de setembro aproximava-se e, com este, o inevitável regresso às aulas. Aturei os seus queixumes apaixonados por afirmar que lhe era impossível esquecer o Élio que abandonara os estudos. Escrevi-lhe uma nova história, um conto em que o protagonista masculino era o nosso ex-colega. Fui com os meus pais e o meu irmão fazer as habituais visitas à família que aconteciam em agosto, nos fins-de-semana em que tal era possível. Mas quando toda aquela azáfama de que me rodeava se aquietava, Diego regressava ao meu mundo por via daquelas notícias horríveis.

Tentei algumas vezes telefonar para a sua casa em Nápoles, mas ninguém me atendeu. Desisti ao fim de três dias de silêncio. A situação agudizava-se. O campeonato italiano tinha começado no domingo, vinte e sete de agosto, e Diego continuava arrogantemente ausente. O seu comportamento indisciplinado era censurado com uma contundência arrepiante e eu andava numa pilha de nervos. Ele continuava a ser, para mim, o melhor jogador de futebol do mundo, incomparável e inimitável, mas agora parecia ter caído do pedestal e perdido o brilho. Todos os dias ouvia os insultos velados que lhe lançavam os jornalistas, com os seus textos azedos e desdenhosos que arrastavam o nome de Maradona pela lama. Lançavam-lhe todo o tipo de acusações, desde a falta de profissionalismo, noites dissolutas com prostitutas e droga, até despotismo dentro do balneário. A imagem que faziam de Diego confundia-me, porque não conseguia lembrar-me de algum momento em que ele tivesse tido esses defeitos que lhe apontavam com a fúria de um pelotão de fuzilamento.

No Napoli, o treinador Ottavio Bianchi tinha sido substituído por Alberto Bigon. Era uma antiga reivindicação de Diego que andava de candeias às avessas com o treinador. Os dois até tinham sido multados no fim da época passada por causa dessas discussões que ganharam contornos de escândalo. Pareceu-me que a mudança de treinador seria uma maneira de o presidente Ferlaino atender a uma das exigências de Diego para convencê-lo a regressar. Diego, contudo, mantinha-se irredutível.

O argentino era constantemente perseguido por jornalistas e repórteres que lhe exigiam uma declaração sobre os acontecimentos, num assédio que me exasperava. Ele não falara com ninguém ainda, o que dava azo a mais especulação. Estava convencida de que metade do que se dizia e escrevia era mentira, porém não tinha forma de o comprovar e sentia-me perdida no meio daquele furacão que acontecia tão longe de mim.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora