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No dia vinte e dois de abril, uma quarta-feira, o Real Madrid recebia o Bayern de Munique para a segunda mão das meias-finais da taça dos clubes campeões europeus, época de 1986, 1987, com um estádio Santiago Bernabéu à cunha, lotado com cerca de cem mil espetadores a se acotovelarem nas bancadas.

Foi o jogo da vida do guarda-redes belga Jean-Marie Pfaff. Mas já lá irei.

Jogava-se o acesso à grande final da competição, depois de já ter havido uma primeira ronda quinze dias antes, a oito de abril. Nessa altura falhei os jogos, falhei tudo na minha vida menos a obrigatoriedade da escola. O falecimento do meu tio Luciano era muito recente, alguns dias apenas, o funeral tinha acontecido havia pouco tempo e anulou-se tudo o que existia dentro da minha casa. A televisão fora das primeiras vítimas da censura derivada do luto da minha mãe e assim não vi o jogo em que o Bayern de Munique ganhou ao Real Madrid por uns esmagadores quatro a um. Só tive conhecimento mais tarde das notícias dessa noite estrondosa em Munique. Foi uma partida tão categórica para o lado alemão que ao intervalo já tinham fechado praticamente o resultado ao estarem a vencer por três bolas a uma.

Para a segunda mão, mesmo levando em consideração todos os cuidados que rodeavam a equipa na sua estadia na capital espanhola, os alemães, desde dirigentes aos próprios jogadores, estavam descontraídos e confiantes num resultado que, no fim da noite, lhes seria favorável – até podiam perder por uma margem mínima – e que os levaria à final. E eu, incluída naquela tempestade de orgulho, confiança e euforia, considerava-me tão alemã quanto eles.

Nessa manhã de abril, que se adivinhava de glória teutónica em terras do reino de Espanha, Jean-Marie foi bater-me à porta do quarto. Recebeu-me com um abraço e perguntou-me se Valdano tinha sido simpático. Muito simpático, esclareci-o, mas não entrei em detalhes. O belga também não estava especialmente curioso em relação ao que tinha acontecido ontem comigo. Estava em Madrid, estava bem-disposta e era o suficiente.

Tomei o pequeno-almoço com a comitiva do Bayern. Comemos numa sala reservada especialmente para o clube no sétimo piso, não houve misturas com os outros hóspedes do hotel. Jean-Marie falava pelos cotovelos. Como sabiam que a eliminatória não lhes fugia tinham viajado de Munique com a segunda equipa. Suplentes? Não, a segunda equipa. Fingi que compreendi e pus-me a pensar no que aquilo significava, pelo meio da tagarelice de Jean-Marie que me ia apresentando os jogadores, apontando-os e dizendo os seus nomes, aquele é fulano, aquele é beltrano, aquele é sicrano, e descobri que o Bayern era um clube tão rico e poderoso que se podia dar ao luxo de ter duas formações de jogadores capazes de alinhar contra qualquer outra equipa, mesmo contra o igualmente rico e poderoso Real Madrid. Fiquei impressionada.

De manhã fui num autocarro fretado com a equipa até ao estádio, onde aconteceram os últimos treinos, que incluíram adaptação ao relvado e pequenos exercícios que não esforçaram demasiado os jogadores. Era como se tivesse voltado ao México. Mantinha-me discreta no meu canto, observava o que acontecia à minha volta e seguia as indicações que me diziam para ficar, para sair, para fazer isto ou aquilo, não interferia em nada, evitava a imprensa mais agressiva. Olhei para o cartão de Jorge Valdano que, a dada altura, retirei da carteira. O futebol sobrepusera-se, mais uma vez, à minha vida normal e a volta por Madrid ficava adiada. Puxando do meu otimismo não me importei lá grande coisa, pois contava regressar à cidade e fazer, noutra ocasião, o que não podia fazer naquela quarta-feira de jogo grande das competições europeias.

A seguir ao almoço os jogadores descansaram no hotel e acompanhei Jean-Marie sempre que me foi possível. Houve televisão, jogos de cartas, leitura de jornais, convívio ameno com a equipa técnica. O belga só se afastou de mim para a última avaliação médica e para a conversa final com o treinador. Continuava a sentir-me como se tivesse regressado ao México, até ouvia falar espanhol por todo o lado, e estava nas minhas sete quintas.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora