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A Marta foi à minha frente, munida do papel para recolher os autógrafos, duas folhas presas no meio por um agrafo que a professora São arrancara de um bloco de notas minúsculo com capa de couro. Justificara o objeto inusitado com a necessidade de tirar apontamentos imprevistos, quando a olhámos com um espanto um pouco exagerado por ela ter material de papelaria à mão. Para nós, tudo o que invocasse a escola, como cadernos ou lápis, era proibido usar e carregar fora das aulas. Numa discoteca, ainda que fosse num domingo à noite que estava mais parado do que as águas do Mar Morto, ainda era mais proibido. A professora também nos emprestou uma esferográfica. Novos gritos de admiração e perguntas sobre o que mais tinha ela na mala que fosse inútil. Não participei, obviamente, na algazarra. Sempre que viajava, eu andava com um caderno atrás, para escrever o meu diário, que conhecia atualizações constantes.

Atravessámos a pista para alcançarmos o lugar onde estavam os jogadores. Eram mais homens do que mulheres e, quando me aproximei mais, reconheci que se tratavam de jogadores do Futebol Clube do Porto. No centro estava Rui Águas, filho do mítico benfiquista José Águas e irmão da cantora Lena d'Água, que protagonizara naquela época a escandalosa transferência do Benfica para os rivais nortenhos. Havia pessoas mais velhas e deduzi que se tratavam de técnicos ou outro pessoal do clube que tinham resolvido sair naquela noite para um copo e talvez um pé de dança, embora o disk jockey demorasse a colocar música mais mexida para abrir finalmente a pista.

Nisto, vi-me à frente do Rui Águas. Ele estava sentado e levantou a cabeça para me encarar. Fez um esgar que ficou a meio caminho entre a careta e o sorriso. Pestanejei desorientada e olhei para os lados. A Marta acanhara-se. Ficou para trás e deixou-me avançar sozinha. Só que era ela que tinha o papel e a esferográfica. Pedia-me com a sua atitude que eu fizesse a introdução e depois avançaria, foi isso que entendi.

Era ridículo, mas senti-me um pouco inquieta naquela posição. Não fazia qualquer sentido acanhar-me e gaguejar, corar e tremelicar, quando estava mais do que habituada a conviver com futebolistas nas mais variadas situações, desde um estádio delirante até ao interior fatigado de um avião, mas acabei por hesitar e mostrar as debilidades da minha tenra idade, das minhas pequenas inseguranças que continuavam a assombrar-me.

– Boa noite – comecei. – Eh... a minha amiga... – Apertei a boca. Nada de desculpas. Como se a iniciativa tivesse sido minha, disse com a voz firme: – Eu gostaria de pedir os vossos autógrafos, se não se importam.

O Rui Águas manteve-se imóvel, a trespassar-me com o seu olhar, como se visse para além de mim, como se eu não existisse, a tomar-me como uma coisa incómoda que deixa de nos importunar se a ignorarmos, um inseto minúsculo que devemos enxotar enojados. Era o que ele fazia! Estava a desdenhar de mim e da Marta, a portar-se como um idiota. Afinal, éramos só duas miúdas que queriam o raio de uma assinatura num papel. Podia ser o rabisco que ele entendesse, sem dedicatória, sem conversa, sem outras lamechices, sem compromissos. Só lhe iria custar uns míseros segundos e depois voltávamos para o nosso lugar. Não desejávamos conviver com gente daquela, antipática, quando estávamos com a nossa maravilhosa turma e a ainda mais maravilhosa professora São.

Indignei-me e enfureci-me.

– Oiça... – comecei.

– O quê? – cortou-me.

– O quê o quê? Queremos um autógrafo.

– O quê? – repetiu. Estava no gozo e queria claramente humilhar-nos. O propósito, de tão abominável, não era totalmente claro. Ele não ganhava nada em pôr-se com aquelas manias e nós, se ainda não se tinha apercebido, não iríamos desmobilizar. Por isso, o melhor a se fazer seria despachar depressa a questão e cada um ficava a aproveitar a noite da melhor maneira, passada a situação constrangedora.

Aqueles Dias de MaravilhaOù les histoires vivent. Découvrez maintenant