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Entrei em casa convencida de que iria ser castigada severamente. E importava-me? Não. Queria ser castigada para ver se expurgava de mim aquele torpor, aquela azia, aquele peso. Sentia-me morta por dentro e feia por fora. Invisível e impositiva, numa dualidade que me enojava.

Quando meti a chave na porta e a fechei atrás de mim, estranhei não ter sido logo abordada pelo meu pai ou pela minha mãe, ou até pelo meu irmão que brincava com qualquer coisa que o fazia conversar sozinho, guinchar e fazer ruídos com a boca, talvez carros ou bonecos. Esperei uma investida violenta, gritos, bofetadas, mais gritos, um novo castigo que me reduziria a ninguém. Mas não aconteceu nada.

Fui para o meu quarto, sentei-me na cama. Olhei para a porta que deixei aberta à espera dos meus algozes e continuava a não acontecer nada. A minha mãe cozinhava o jantar, o meu pai via televisão e provavelmente lia o jornal na sala, o meu irmão entretinha-se nas suas brincadeiras. Eram perto das sete da tarde. Não contava ter chegado a Portugal tão tarde, ainda esperei assistir às últimas aulas do horário, mas houve um atraso no avião para Lisboa e acabei por apanhar o comboio e não o autocarro para Faro. Conformei-me de que também tinha perdido a terça-feira de escola, para além da segunda, e estava tão anestesiada com as minhas apoquentações que não achei preocupante.

Desmanchei a mochila, arrumei as minhas coisas, separei a roupa para pôr a lavar, fui tomar banho. Ao sair da casa-de-banho apanhei a minha mãe no corredor. Empalideci e estremeci. Ela disse simplesmente para ir para a mesa, a comida estava pronta. Obedeci cabisbaixa. O meu pai entrou na cozinha. Perguntou-me se o fim-de-semana tinha corrido bem. Gaguejei, sim, muito bem. Acrescentei que estava cansada, queria deitar-me cedo. A minha mãe, que servia os pratos, observou, ainda bem que fiz o jantar a esta hora, assim consegues deitar-te mais cedo. Concordei e não falei mais nada. O meu irmão também não implicou comigo. Aquilo estava tudo muito estranho.

Antes de ir para o quarto perguntei ao meu pai se iria levar-me à escola no dia seguinte. Fez que não com a mão e respondeu, não, não te vou levar. Amanhã entro uma hora antes, porque também quero sair antes do fecho do expediente para ver o jogo do Benfica. Na quinta-feira voltávamos à rotina que se manteria até ao final do ano letivo, combinou. Nessa noite, só adormeci rapidamente e dormi que nem uma pedra porque estava efetivamente esgotada, não era invenção para me escapar de um possível interrogatório.

No dia seguinte, atravessava o portão da escola e estaquei com um berro que me chamava. Voltei o pescoço e antes de poder reconhecer quem me abordava, senti que me agarravam, que me empurravam, que me envolviam num abraço.

– Estás bem! Estás viva! Não te aconteceu nada! Que alívio, Tina! Que alívio!

Afastei a Monique de mim.

– Bom dia. O que é que se passa?

Franziu-me o cenho, tornou-se vermelha com manchas brancas na testa, nas maçãs do rosto e na ponta do nariz. Era típico quando se enervava com alguma coisa que a indignava ao ponto de lhe baralhar os humores, que a podia deixar tanto apoplética, quanto passiva.

– O que é que se passa? – sussurrou-me, zangada. – Eu digo-te o que se passa. Estiveste desaparecida! Ninguém sabia onde estavas e faltaste à escola anteontem e ontem! E eu com a minha cabeça no cepo por causa de ti! Defendi-te, Cristina. Estás a ouvir-me? Defendi-te e estava cheia de medo que a polícia viesse bater à minha porta a perguntar porque motivo estava eu a mentir, pois tu tinhas sido encontrada morta! Ou coisa pior.

– Monique... não estás a fazer sentido... – murmurei. – Não estou a perceber.

Puxou-me para que saíssemos do portão. Afastámo-nos do fluxo de estudantes que se impacientava por estarmos paradas no meio da entrada e que começavam a dar-nos encostos nada meigos. Parámos junto a um dos canteiros largos. Ela continuava a segurar-me os braços, com receio que me escapasse. Eu não iria fugir, também eu queria esclarecimentos.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora