103.

19 4 22
                                    


Dia três de maio de 1989. Primeira mão da final da taça UEFA. Nápoles.

Era esse o meu endereço completo naquele dia.

Cheguei à cidade por volta das quatro e meia da tarde. Um carro discreto foi-me buscar ao aeroporto, uma sucata barulhenta e fumarenta que não levantava quaisquer suspeitas no trânsito medonho de Nápoles. Não conhecia o homem ao volante e não entabulei conversa, apesar de me ter sentado no lugar do pendura.

Nápoles continuava escura, suja e agreste, mas emocionei-me naquele meu regresso. Desde novembro que não a visitava, havia mais de seis meses. Demasiado tempo longe. Precisava daquele lugar como o ar que respirava, determinei. Na minha mochila, para além dos artigos essenciais para uma estadia curta de apenas um dia, trazia o caderno dos apontamentos para o meu primeiro romance. Senti-me imediatamente inspirada a escrever como gostava de ver a luz da primavera a fazer brilhar a joia baça que era a cidade, que se ocultava ufana debaixo daquela máscara farrusca. Suspirei. Felizmente, o meu motorista também não queria conversar comigo e não se mostrou interessado em conhecer a razão dos meus suspiros.

Levou-me diretamente ao estádio. Perguntei o motivo, esperava ir primeiro à casa de Diego. Apontou sucintamente para o seu relógio de pulso, estava na hora ou era tarde, não entendi qual a referência correta, e disse-me que procurasse pelo Carmando. Passava pouco das cinco da tarde, estava esfomeada e agora era largada sozinha nas traseiras do San Paolo.

Uma multidão festeira, ruidosa e arruaceira precipitava-se para as entradas do estádio que começavam a abrir. Entoavam os seus cânticos de apoio, exibiam bandeiras, faixas, acendiam tochas, disparavam petardos. E mais gente chegava em autocarros que faziam fila para alcançar as paragens que serviam o local, impregnando o ar de um cheiro acre a gasóleo queimado.

Acerquei-me da porta que estava próxima. Fui barrada por um polícia. Tentei explicar que precisava de falar com Salvatore Carmando, que o massagista me esperava, era uma convidada especial de Maradona, tinha acabado de chegar do aeroporto, do avião particular do argentino, mas quanto mais falava, mais o homem duvidava da veracidade das minhas palavras. O seu descrédito espalhava-se gradualmente pela expressão que de firme passava a trocista. Interrompeu-me, eu estava a repetir tudo empregando novas palavras para passar as mesmas ideias. Despachou-me para as portas principais do estádio que ficavam no lado oposto e avisou-me que só podia entrar com bilhete. Se não tivesse bilhete que nem tentasse enganar os porteiros. Eles tinham ordens muito restritas. Tratava-se de um jogo europeu, nada de gracinhas e outras ameaças em dialeto que, pelo meio, teriam alguns insultos, eu é que não os decifrava corretamente.

Insisti, a ficar cada vez mais desesperada e agitada. O homem deu-me um empurrão. Indignei-me e gritei-lhe que ficava sem aquele emprego miserável se me impedisse de encontrar o Carmando. Espetei-lhe um dedo à frente da cara, espumava e rugia, crescia em altura pondo-me em bicos de pés. Em resumo, fiz um escândalo de tamanha envergadura que o homem, para me deixar de ouvir, concordou em levar-me até ao Carmando. Se ele não me conhecesse, voltou a ameaçar-me enraivecido, de dentes cerrados, prometeu-me uma sova.

Naquela fase, eu tremia e estava cheia de medo. Mantive, porém, a minha postura corajosa e sorri-lhe em jeito de desafio.

Entrámos para dentro do estádio, atravessando o portão mais pequeno que era utilizado pelo pessoal auxiliar. O portão maior estava destinado aos jogadores e à equipa técnica. Já estavam todos lá dentro, a ocupar os balneários, a se prepararem para o jogo, a primeira final das competições europeias daquela temporada. De relance vi os dois autocarros, do Napoli e do Estugarda, devidamente estacionados, com as luzes apagadas e o motor desligado.

O homem fez algumas perguntas e levou-me, sempre arrastada, pelo corredor. Alguém avisou Carmando e ele veio ter connosco. Assim que me viu, levantou os braços num sinal de espanto e pediu aflito que o homem me soltasse. A manápula que me esmagava o braço abriu-se e eu escorreguei. Endireitei-me, compus a minha roupa, a mochila sobre o ombro. Continuava amedrontada e trémula, mas sabia que estava a salvo. Carmando levantou a voz e gesticulou, muito estranho nele, o homem desdobrou-se em desculpas, de mãos unidas junto ao peito, a dividir o seu olhar entre mim e o massagista. Acabou por desistir. Aceitou que tinha cometido uma estupidez, percebeu que corrigira o erro a tempo, vergou a cabeça num ato de contrição, recuou apressado continuando a pedir desculpas. Aquilo foi tão exagerado que, por um pequeno instante, senti pena do homem que, bem vistas as coisas, não tinha culpa de ter tentado cumprir o seu dever com o aprumo que aquela ocasião exigia. Eu podia estar a mentir, eu podia ser perigosa. Mas era legítima e o Carmando acabava de o confirmar.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora