É preciso respeitar a natureza - 87

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          No coração daquela floresta parece que tudo é mais pesado: o frio bate mais intenso, o vento sopra mais forte, uivando enquanto passeia entre as árvores de copas altas, chacoalhando suas folhas. O traje, isola Jow do frio ameno, enquanto os outros se cobrem com suas mantas térmicas.

          Protegido e quentinho dentro da sua armadura, sua mente vagueia buscando refúgios nas velhas lembranças ou em histórias nunca vividas, entre passado e fantasia, se conforta agora em uma lembrança turva, talvez motivada por estar em uma floresta densa. Ele se vê novamente em uma floresta, mas está bem mais jovem, traz consigo uma besta com a flecha armada, e caminha afoito, afobado por entre a vegetação e galhos secos.

          — Jony, espera. O Vovô não tem mais essa energia suficiente pra te acompanhar. A gente tem a noite toda. — Seu avô que vem logo atrás dele, tentando acompanhá-lo, o terreno é irregular e íngreme, ele reclama sussurrando tentando não fazer barulho.

          — Vovô, eu não quero perder o rastro, ainda está fresco, olha... — Ele aponta para as pegadas no chão. — Parece ser um cervo adulto bem grande. Vai dar um alvo e tanto. Se for como eu estou pensando, quero fazer um troféu igual ao seu, vovô.

          — Muita calma garoto, você terá seu tempo pra tudo.

          O terreno fica plano novamente e o velho Baltazar consegue alcançar seu neto, que caminha focado, determinado, está concentrado na sua caçada, seguindo o rastro do animal, aparentemente um cervídeo, podendo ser uma corsa, um cervo, ou um alce.

          Então o garoto diminui o passo, se abaixa e continua andando pisando manso, já imaginando o que acabara de acontecer, Baltazar repete o gesto fazendo o mesmo, e caminha até estar ao lado dele. Ele se abaixa por trás de um arbusto e fica olhando pela mira da besta, do outro lado, há uns 10 a 12 metros de distância deles, um imenso animal, belo e robusto, com uma grande e linda galhada, caminha tranquilamente entre as árvores, sem nada desconfiar, um alvo perfeito. A lua está quase cheia e se exibe enorme no céu, fazendo a noite ficar clarinha como os primeiros minutos da aurora. Baltazar traz consigo pendurado no pescoço um binóculo com lentes especiais que melhoram a visão a noite, ele leva o equipamento aos olhos e uma coisa que vê o assusta, fazendo-o retirar rapidamente e olhar direto na direção de seu neto, que agora está com a arma bem apoiada no ombro, o queixo encostado no cabo, um olho fechado e o outro fixo na mira, ele enche os pulmões de ar e prende a respiração para poder ficar imóvel. Percebendo o quão avançado está sua postura, Baltazar leva a mão e passa em frente a mira e em seguida a pousa sobre a arma, segurando a flecha para impedir que ela seja disparada.

          — O que foi vovô? Ele estava na mira, era impossível eu errar. — O garoto sussurra ao avô, visivelmente indignado.

          Sabendo o que estava fazendo, Baltazar apenas leva o dedo indicador na boca fazendo gesto de silêncio e aponta novamente para o animal.

          — Não é ele, é ela. Presta atenção. — Ele sussurra bem baixinho ao lado do neto e os dois observam o comportamento do animal.

          O cervo levanta a cabeça em alerta e observa bem a sua volta para ter certeza de não haver predadores por perto, em seguida começa a rebramar de leve, baixinho, um pequeno arbusto a sua frente se mexe e dele sai um pequeno filhote que vem correndo todo saltitante, direto para as tetas da mãe obter seu alimento, e ela, enquanto ele mama, continua em alerta, a cabeça levantada, os olhos atentos e as orelhas em pé como um radar, dando rápidas abaixadas para lamber e cuidar de sua cria.

          — A não ser que queira matar a mãe e o filhote sugiro sairmos daqui, até porque você não iria deixar ele órfão abandonado na floresta. Não é mesmo?

         Baltazar pega de leve no braço do neto e vão com todo cuidado dando passos para trás, se afastando para dar espaço e tranquilidade para a mãe e seu filhote, dão a volta a uma boa distância se mantendo contra o vento para não incomodá-los e vão até uma outra parte mais aberta da floresta. Escolhem um bom lugar e se repousam para comer, eles sentam lado a lado e Baltazar pega um pequeno fogareiro portátil e uma lata que trouxe com comida, acende o fogo e sorri do neto que não tem mais no rosto o semblante indignado, agora ele parece triste, com pesar.

          — O que foi garoto? O que lhe incomoda?

          — Vovô, eu quase a matei. Quase deixei aquele filhotinho sem a mãe.

          — Foi por isso que eu vim, para te orientar. Você já é um hábil caçador, concentrado, tem boa pontaria, certeiro sabe o momento certo e a posição perfeita de atirar, só precisa aprender isso, os sinais da natureza. Precisa conhecê-la, entendê-la, respeitá-la. Esse é o meu papel contigo hoje.

          — Como o senhor sabia?

          — Em um determinado momento, na posição certa pude ver seus peitos, bem grandes e carregados, eles ficam entre as pernas traseiras, e isso afeta até o seu jeito de andar. Um animal na mata, não tem peitos grandes a não ser que esteja amamentando... até onde eu sei, ainda não existem veterinários fazendo implantes de próteses de silicone por aí, então só pode ser leite.

          O garoto e o avô sorriem brevemente da piada e ele continua o que estava dizendo:

          — Quando se vive em comunhão com a natureza, ela cuida de você, mas você também deve cuidar dela, nós precisamos comer, isso é fato, mas não devemos nos apropriar de mais do que precisamos. Pode ver que só saímos pra caçar quando acabou toda a carne, e o vovô sempre aproveita todas as partes da caça abatida, carne, couro, ossos... tudo deve ser utilizado ou voltar de forma proveitosa para a natureza. Sempre abatemos adultos, de preferência machos, reservamos os períodos de acasalamento de cada espécie, os períodos de gestação e os filhotes. Não derrubamos mais de um indivíduo, nem algum animal que não possamos carregar, ou comer. Sendo assim, mantemos o equilíbrio das espécies da mata e da nossa.

          — Nossa vovô, isso é muito bonito.

          — Tem outra coisa que ainda não lhe contei, a Terra é como um enorme ser vivo.

          — Quer dizer que é como uma cabeça cheia de piolhos...? — O garoto brinca e sorri, seu avô sorri de volta.

          — Quase igual a isso, mas imagina uma cabeça que dependa dos piolhos pra existir, assim é a terra. Tudo faz parte de uma única coisa viva. E ela pode ouvir e entender a todos, ela só não responde como nós falamos uns com os outros, mas responde do jeito dela. Então quando abater uma caça, aproxime-se dela com respeito, peça desculpas por tê-la matado e diga a ela que foi necessário, e o quanto será importante para você e para sua família, como fonte alimento, agasalho e fertilizante para sua colheita. A tribo onde eu fui criado considerava toda a forma de morte como um crime, não só a de um membro da tribo, mas de todo ser vivo que habita na Terra. Mas se você tivesse um motivo de sobrevivência e prestasse suas desculpas após abater o animal, você seria perdoado e o espírito do animal ou pessoa poderia subir em paz, caso contrário, se não fizesse a reverência ao morto, o espírito dele continuaria vagando, agonizando em busca de vingança, seja humano ou animal, aí seria necessário o pajé fazer um sacrifício próprio, pedir perdão ao espírito em nome do malfeitor, e aos Deuses que o recebessem do outro lado da vida.

          — O senhor está dizendo que eu devo falar com o animal morto?

         — Não exatamente com o animal morto, mas com todo o ecossistema a que ele pertence, tudo pode te ouvir. É uma forma de demonstrar para o planeta e para si mesmo o respeito e admiração que você tem para com toda forma de vida.

          A conversa tranquila dos dois é interrompida pelo arbusto logo atrás ter se mexido e um som de galho seco se quebrando no chão, pela pressão de uma pegada pesada. Mais que depressa o pequeno Jony tem sua besta em punho e seu avô, a velha espingarda em posição de disparo.

Mundos Entre Luas - A Resistência (CONCLUÍDA)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora