Dos Grimórios de Gillard Eileen, Mestre da Casa de Eli
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Eu cumpri incontáveis missões durante meus trinta e dois anos como um Mestre da Casa de Eli. Cacei e exorcizei demônios, matei vampiros, trabalhei lado a lado com Caçadores do Clã e com outras entidades da luz, inclusive magos e feiticeiros que buscam trazer o bem às pessoas do mundo. Entretanto, nunca tinha cruzado meu caminho com Willard Van Helsing, mesmo que tenha ouvido o sobrenome vezes incontáveis.
Os Livros de Eli escritos pelos mestres antes e contemporâneos a mim relaram encontros de dezenas de Van Helsings durante toda a História: Livius, Jalil, Ayrie, Cankev e Eddard são apenas alguns. Eles sempre eram descritos como feiticeiros, magos e Artistas excepcionais, com habilidades muito mais elevadas do que os próprios escritores.
Os Van Helsings sempre estavam envolvidos em grandes eventos com consequências catastróficas; fossem causadores ou aqueles que tentaram impedir. Um relato que datava da Era dos Dragões contava a história de Merkesh Van Helsing, o mais forte dos Van Helsing, fora um dos responsáveis pela queda do Império Romano. As lendas diziam que Malkior, o último dragão, participou da batalha que derrubou Ravena.
O castelo de Willard era um dos maiores de toda Romênia. Uma herança passada de geração em geração durante séculos, incontáveis histórias haviam acontecido ali. Eu conhecia poucas de registros feitos por diversos Mestres da Casa de Eli. Entretanto, notei algo diferente do descrito nos grimórios.
Todos os antigos mestres a irem àquele lugar haviam descrito o castelo com paredes negras, janelas altas de vitrais e três torres magnificas, cada uma sob uma constelação diferente; todos eles diziam que essas torres haviam sido criadas desta maneira para ampliar a magia de seus moradores. Entretanto, o castelo diante de mim detinha quatro torres.
Meu primeiro palpite é que ela havia sido construída nos últimos trinta anos, de quando datava a última visita de um mestre ali. No entanto, aquela torre tinha marcas tão antiga quanto as outras: musgos, dentições e coloração que viram muito mais do que trinta anos. Pude jurar haver marcas de flechas e lanças de alguma batalha longínqua no passado.
Fechei os olhos e recitei a Creator nobis revelat magicae, porém não obtive qualquer sinal de feitiço existente. Mudei a entonação e minha vontade, tentando descobrir se em algum momento do passado aquela torre estivesse camuflada com magia; foi exatamente o que descobri. Durante séculos, desde a fundação daquele castelo, aquela torre permanecia escondida por alguma razão.
Diante de mim estendia-se um portão de ferro com dezenas de palavras pequeninas desenhadas minuciosamente; era palavras em várias línguas, a maioria nem ao menos era usada. Também havia latim, o que me fez imaginar se algum padre ou bispo as tinha escrito ali – uma afronta às Leis e uma traição, mas eu sabia que nem todos nós éramos leais ao Senhor.
Porém, a parte mais proeminente era o escudo da família, que se partido ao meio quando o portão se abrir, em prata e bronze. No centro havia um livro, cuja página esquerda estava em chamas negras de bronze. Na página da direita estava escrito veras vertiotre, palavras na língua luciferiana que significam verdade absoluta. Um dragão abraçava o brasão, apenas suas patas, sua cabeça, uma parte do pescoço e a calda eram visíveis. Perguntei-me se aquele não era Malkior.
Assim que toquei no ferro do portão, minha mão queimou-se como se encostasse no fogo do próprio Inferno. Feitiços poderosos impediam-me de entrar, todavia, para combatê-lo, eu precisava descobrir quais as condições de modo que eu pudesse camuflá-la e permitir a minha entrada; exceto, é claro, que a condição fosse pertencer a família Van Helsing, o que seria impossível de imitar.
Com uma combinação de água benta, zveroboi – uma erva nativa da Rússia com folhas amarelas vibrantes –, um pouco de pó de osso de musaranho da Sardenha e sangue de cadáver. Uma combinação nunca tentada antes, contudo as propriedades de tais ingredientes poderiam detectar as condições. Optei outra vez pelo poema Creator nobis revelat magicae, pois era o que mais se encaixava no objetivo que eu buscava.
Quando reabri meus olhos, apenas o sangue misturado com água benta restava, o que significava meu temor de que apenas aqueles com sangue Van Helsing poderiam entrar no castelo. Eu precisaria encontrar um meio de contornar essa situação, mas não havia muitas opções, ainda mais considerando que estávamos nos referindo a uma família de feiticeiros poderosos, alguns diziam, detinham sangue de Caídos correndo em suas veias. Uma ideia me veio a mente, mas era um tanto arriscada demais e envolveria Ladislav Ulvaeus.
Um nome sombrio na história da Magia, Ladislav era um homem cujos poderes eram extremamente conhecidos no submundo mágico e entre mercenários, mas também era conhecido entre os Mestres da Casa de Eli. O nome aparecia nos grimórios do Bispo Joonas Puurunen, meu professor na magia cristânica, foi quem descobriu as ruínas de Kumari Kandam e usou os conhecimentos e magia para aterrorizar dezenas de cidades e milhares de pessoas pela Europa e Ásia; alguns diziam que ele era dono de algum país na África.
Todavia, as razões que me levaram a buscá-lo era a combinação de habilidades que Ulvaeus tinha. Ele era um Apanhador de Sonhos, uma pessoa capaz de entrar e manipular o Reino dos Sonhos; tal Reino era uma das essências do universo, assim como o Reino dos Vivos e Reino dos Mortos, nascido da mente dos homens. Os Apanhadores podiam controlar os sonhos. As lendas diziam que todo Apanhador era descendente do deus pagão do sonho, Morfeu.
Ladislav não se escondia, ele não temia reis, cavaleiros ou padres; não temia qualquer autoridade da lei, fosse dos homens ou do Criador, por isso, o único problema era que ele estava do outro lado do continente, em Londres. Eu não tinha tempo para ir até lá; a peste de Willard já havia tirado a vida de centenas de milhares de pessoas. Por isso, tive que usar um dos piores feitiços criados pelos mestres.
Peguei entre meus pertences um espelho forjado por Miki Kleist, um ferreiro lendário que viveu contemporaneamente a Platão. Seu trabalho em bronze, assim como a peça que eu tinha em mãos, eram embebedados em magia e feitiços dos mais distintos. De acordo com histórias, ele havia forjado o espelho para falar com uma pessoa amada. Entretanto, os detalhes dessa história haviam se perdido em algum momento da História.
Com uma adaga, fiz um pequeno furo na ponta de meu dedo. Apertei para que algumas gotas de sangue caíssem sobre meu reflexo e com a poesia "Ostende mihi qui tentant", escrito por Zdeněk Nový, um padre Mestre da Casa de Eli que viveu quase contemporaneamente ao Senhor Jesus Cristo. Mostre-me aquele quem procuro, traduzindo o nome do poema, tinha a função de usar uma superfície reflexiva como um transmissor de imagem. Por ser um feitiço de sangue, não é muito bem visto entre os mestres.
Levou alguns minutos para a imagem do homem surgir do outro lado do espelho. Ladislav Ulvaeus era um homem nojento, com dentes podres e amarelos, muitos faltantes e substituídos por cópias feitas de madeira; seu nariz parcialmente cortado – resultado de uma batalha contra ingleses anos antes – parecia estar constantemente infeccionado; era uma surpresa ele ainda estar vivo.
Sua pele, de rosto e corpo, era coberta de cicatrizes de batalhas que enfrentou durante sua vida. Grimórios diziam que ele havia enfrentado dois Mestres da Casa de Eli ao mesmo tempo, e sobrevivera para contar o feito; num deles, pertencente a Dominc Holden, detalhava o combate. Contudo, Ladislav não estava sozinho.
Atrás dele, eu vi uma taverna, repleta de pessoas bebendo e se prostituindo, vi alguns piratas e outras pessoas bêbedas. Eu praticamente podia sentir seus pecados e suas almas indo direto para um dos Nove Círculos do Inferno. Ladislav parecia estar olhando para um copo com algum líquido transparente, provavelmente água; eu o conhecia como um beberrão, mas isso não significava que ele não poderia estar bebendo água.
– Gillard o Bom. – Ouviu a voz do Ulvaeus, que não era exatamente a de um cantor. – O que um pecador, no meio de suas corrupções, pode fazer por um servo do Senhor? Ainda um Mestre da Casa de Eli?
– Preciso de uma projeção astral.
– Interessante. – Ele tinha um sorriso sarcástico e vitorioso que mostravam seus dentes de madeira. – Se me lembro corretamente, caminhar entre os Reinos era estritamente proibido, de fato, foi este exato motivo que conseguiu me excomungar da Igreja. E eu amava os sermões do Padre Matthew. Que saudade. Se não fosse por ele, eu nunca teria conhecido minha belíssima esposa.
– Aquela que você abandonou e morreu depois de ser estuprada por quase cinquenta piratas em praça pública? – Retruquei, perdendo a paciência; eu não estava com tempo sobrando para as conversas sem rumo que Ladislav tanto adorava. – Não importa, Ulvaeus, eu preciso fazer o trabalho do Senhor, seu Criador, e preciso entrar em uma torre que apenas um Van Helsing pode entrar. E a única maneira é com projeção astral.
Ele arregalou os olhos. Assim como todos os magos do mundo, ele conhecia o nome Van Helsing. Sabia que ir contra um deles era extremamente perigoso, mesmo que em segredo e estando do outro lado do mundo com um álibi e incontáveis testemunhas ao seu redor. Se Ladislav ajudasse e fosse descoberto, ele estava tão morto quanto o Rei Philippe.
– O que você pede tem um preço alto, um que não pode ser pago em ouro, prata ou joias. – Ele agora tinha um tom sério, devido a gravidade daquele quem desafiariam. O desafiei a dizer de uma vez seu preço: – Seu grimório ou um deles pelo menos. Não há nada mais valioso do que o conhecimento da Casa de Eli.
Recusei imediatamente, afinal, não apenas estão registradas todas as minhas viagens e feitiços que usei, também em meus grimórios contavam com dezenas de feitiços e teorias de feitiços que ao longo dos anos que poderiam ser usados das mais perversas formas.
– Então, creio que não temos mais o que discutir. Boa noite. – Ladislav retrucou, saindo de minha visão.
Antes que a conexão pudesse cessar, cedi à solicitação. Todavia, eu formulava um plano em minha mente; ele não tinha como saber os conteúdos de meus escritos, por isso, deduzi que se fizesse uma cópia apenas com informações menos nocivas, ele nunca notaria. Trabalharia nisso antes de ir para Inglaterra.
– Eu preciso que vá dormir. Nos encontramos no Reino dos Sonhos.
Fiz como ele pediu. Apesar deste Reino ser repletos de criaturas chamados de mentalies, os quais caçavam e consumiam aqueles que transpassavam para o Reino dos Sonhos sem, de fato, dormirem. Essas mesmas criaturas eram meu principal problema durante a projeção astral.
Logo que dormi, minha mente estava em um terreno infinito e sombrio, sem qualquer emissor de luz. Meus pés estavam no que pareciam poças de água rasa, que nem ao menos cobriam a sola de minhas botas. Este era o Reino dos Sonhos, em sua forma mais simples e pura. Com as manipulações e feitiços certos, eu poderia criar todo um mundo ali, contanto que eu pudesse proteger as pessoas que nele habitassem.
Ladislav surgiu em sua horrenda forma logo em seguida. Onde antes havia nada, no momento seguinte estava ele. Eu já conhecia as funcionalidades da projeção astral, mas não me recordava de qualquer registro, por isso, as colocarei conforme o Ulvaeus me explicou.
O Reino dos Sonhos é o que conecta os Reinos dos Vivos, dos Mortos e dos mundos que esses compõem. Apesar de uma alma viva poder entrar no Reino dos Mortos, não é certo, pois ela estará brincando com o Equilíbrio. Entretanto, essa liberdade permite que a alma ande entre os Reinos, através dos sonhos. Esta é a projeção astral: um meio de andar no Equilíbrio entre os Reinos.
Mas há protetores, seres que não conheço, que não têm nome, e dos quais vi apenas as sombras. Eles protegem o Reino do Nada e o Equilíbrio. Se ver um mentalie, não se preocupe, apenas se esconda; qualquer obstáculo irá te esconder, pois eles encontram invasores com a visão. Todavia, se ver uma sombra sem forma, destrua a projeção. A palavra "basta" em sua magia cristânica irá servir.
Ladislav usou as mais estranhas palavras, de uma língua que eu não conheci, para separar minha alma de meu corpo; quando vi, éramos dois de mim no Reino dos Sonhos. Mais palavras despertaram meu espirito, que numa experiência extracorpórea, via meu corpo dormindo sob arbustos que usei para me esconder e proteger.
Olhei outra vez para o castelo e fui até ele. Tentei tocar no portão e, como esperado, consegui passar por ele sem consequências – ou pelo menos, alguma imediata. Parei diante da porta da torre que tanto chamou minha atenção. Senti uma magia poderosa vindo dela, mas havia algo diferente nela. Era algo sombrio, como se a própria escuridão a tocasse.
Senti-me doente de repente, como se meu estômago tentasse digerir carne podre; ao mesmo tempo, minha cabeça parecia estar sendo espremida por milhares de mãos ao mesmo tempo. Ofegante, olhei em volta, e vi a criatura vindo em minha direção. Infelizmente, já não me recordo de sua aparência ou seu tamanho, mas lembro de que, assim que coloquei os olhos nela, meu instinto me disse para fugir.
Atrás da torre me escondi, quase imediatamente, senti-me melhor. Era como se o olhar do mentalie sobre me mim causassem todo o desconforto. Olhei em volta, procurando um esconderijo, mas não havia nenhum. A floresta estava vários metros a frente, minha única saída era entrar na torre.
– Posso – consegui dizer, mesmo em meio a dor – entrar na torre sem precisar passar pela porta?
– Não exatamente – a voz de Ladislav vinha de todos os lados, mas parecia estar falando diretamente em minha cabeça, o que deixou a dor ainda mais insuportável – as regras de projeção astral são bem confusas, quando alguém consegue entendê-las, o que eu certamente não entendo. Mas você não pode atravessar objetos sólidos que não sejam passagem no mundo real.
Em outras palavras, apenas portas e portões, concluí. O chão tremeu quando a criatura passou diante da torre. Fui caminhando para o lado oposto, contornando-a e impedindo que ele me visse. Ele estava de costas para mim quando consegui atravessar a porta como se houvesse apenas o arco. Assim que havia paredes ao meu redor, toda a dor sumiu de uma única vez. O mentalie não podia me ver e, portanto, não mais podia afetar minha presença.
Diante de mim, havia apenas a escuridão e uma escada que subia em espiral, a qual subi sem muito esforço. Ela chegava a uma porta grossa de carvalho, na qual havia sido queimado um dragão que cobria quase toda ela; poderia ser qualquer um, afinal, uma queimadura sempre será preta. No entanto, no fundo do meu ser, como se o próprio Reino dos Sonhos estivesse falando comigo, eu sabia que era Malkior o Último, que havia sido caçado até os confins da terra após a morte de Merkesh Van Helsing.
Mais três passos, eu estava dentro da sala no topo da torre, onde uma imensa coleção de conhecimento me esperava.
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Olá leitores, tudo certo? Leandro aqui o/
Sem dúvida, este é meu capítulo favorito dessa história, já que entramos a fundo na história dos ancestrais do Aaron - e estes não são nomes aleatórios, já que eu fiz uma árvore genealógica de Aaron Van Helsing inteira, com datas, indo até o primeiro Van Helsing! Demorou uma vida haha
Espero muito que tenham gostado! Não se esqueçam de garantir seu exemplar de A Nephilim de Prata, cuja pré-venda está acontecendo pelo meu facebook @escritorzapata. Corre lá!
Um for abraço e nos vemos em breve,
Leandor Zapata