Quando o dragão atacou Tuen, Marie estava em Chambert cuidando de Leonard, por isso ela sobreviveu. Os feridos foram levados para o mais amplo saguão de Chambert. Fileiras de corpos estrebuchantes espalhados pelo chão. Olhos fixos, mãos esticadas tentando deter alguma coisa que não estava ali. Marie se ajoelhou ao lado de um homem com a perna queimada. A pele havia desaparecido e o osso estava carbonizado. Não foi a pior ferida que Marie viu naquele dia. Ao menos esse homem estava inconsciente. Muitos gritavam — alguns com as bocas, outros com os olhos, uns até mesmo com as mãos. No entanto, ao ajoelhar perto dessa perna, Marie sentiu-se sem forças. Queria esconder o rosto nas mãos e chorar, mas as mãos estavam secas de sangue e havia pele de outras pessoas debaixo de suas unhas.
Não podia esconder o rosto, mas podia chorar, e isso ela fez enquanto esfregou as mãos no avental imundo. Procurou as ferramentas para amputar a perna à sua frente, o osso branco exposto.
Marie congelou.
Um instante atrás o osso era preto.
A Mestra Curandeira apoiou as mãos no chão, aproximou o rosto da perna. Havia perdido a razão? Estava louca? Ao redor do osso branco a carne parecia mais vermelha do que morta. E estava se espalhando.
Marie pulou em pé. Ignorou a tontura. Queria, precisava, mostrar aquilo a alguém. Ao seu lado, outro voluntário se levantou. Apontava embasbacado para a mulher ferida aos seus pés. Mais adiante uma voluntária de meia-idade estava de cócoras. Caiu sentada no chão. Uma menina queimada se levantou. Virava a mão de um lado a outro. Mão queimada, cicatrizada, desqueimada.
Lobos de Sátiron, o que estava acontecendo? Marie percebeu caos branco com o canto dos olhos. Eram barba e cabelos entrópicos. Enterrado na entropia branca brilhava um par de olhinhos amarelos.
— É ele — disse o voluntário ao lado de Marie. — É o mago.
— Você é responsável por isto? — Marie perguntou ao velhinho.
— É o desejo de Pierre — disse Fregósbor.
— Ele acordou?
— Não. Por que se espanta? Desde quando é preciso estar acordado para se querer coisas?
Magia inundou Chambert como um tsunami varrendo embora queimaduras, quebraduras, morte. Fregósbor queria curar apenas os que haviam sido feridos pelo fogo do dragão (é perigoso curar feridas naturais com magia), mas ele havia estado dormente por tempo demais. Perdeu consciência de seu próprio poder e acidentalmente curou Chambert inteira.
Até Leonard acordou de seucoma.