Capítulo 32: Robert - A vida sem Neville

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Contar o quê? pensou Robert. Tanto tempo se passou desde que Neville deixou Debur que as lembranças se confundiam na cabeça de Robert.

— Acho que tudo começou com os panfletos — ele disse.

— Foram vocês? — perguntou Neville.

Vocês? Não havia um plural naquela época. Os panfletos surgiram, ninguém sabia de onde. O rei e Robert acharam que tinha sido Maëlle, mas Robert não demorou a descobrir quem era.

Ele não contou a Neville como descobriu. Ele não falou das noites insones, das vezes que ele foi até a padaria do Eslariano à noite só para olhar o teto que protegia o sono de Thaila. Neville riria dele. Ou talvez não. Neville nunca ria de ninguém, mas Robert ria de si mesmo. Neville podia não achar vergonhoso um homem se consolar olhando para o teto de alguém, mas Robert tinha vergonha desse amor sem retorno.

Quando pequeno, pois até os órfãos têm sonhos, Robert imaginava redescobrir Sátiron, lá no centro da Terra dos Banidos. Em Sátiron, Terra do Impossível, Thaila amaria ele e não Neville.

Robert não contou a Neville sobre a luz que ele viu na janela da padaria no meio da noite, quando os pães dormiam. Ele disse apenas:

— Foi Thaila quem fez os panfletos.

— Conte sobre a revolução — pediu Neville.

Robert contou. Devagar, como se cada palavra nascesse na base do estômago e tivesse de escalar as entranhas até alcançar a garganta. Ele contou sobre o dia em que Neville foi embora, deixando-os todos para trás. Robert, Thaila, Maëlle. Sobre os panfletos de Thaila. Quando Robert descobriu, ele se juntou a ela, espalhando a verdade pelas ruas de Debur.

— Veneno — murmurou Neville.

Não demorou muito para Maëlle e o Eslariano perceberem o que Robert e Thaila estavam fazendo. O Eslariano repudiou a ideia, mas Thaila estava decidida. Maëlle não hesitou. Então veio a mulher negra arrastando a cadeira, houve mortes aos pés do Esmeralda. Henrique, sempre escondido, recrutou crianças, recrutou até o Acidentado.

— Não era para morrer ninguém — disse Robert. — Nós queríamos apenas que Henrique mudasse, que agisse, que qualquer coisa.

Neville não se espantou que seus amigos e família tivessem iniciado a revolução de Debur. De certa forma, ele já sabia, mas as trevas da Boca tornavam supérfluo o mundo lá fora. Debur havia se tornado um lugar onírico que Neville só poderia alcançar inconsciente ou morto.

— Se você está aqui é porque foi derrotado. — disse Neville.

— Olivier — respondeu Robert. — Ele estava do nosso lado até agora.

— Henrique e Olivier são amigos — disse Neville em tom de dúvida. Lembrar-se do que existia fora da Boca da Guerra provava ser mais difícil do que Neville imaginava.

— No entanto, durante todos esses anos, Olivier esteve em Tuen, abandonando Henrique à nossa mercê — disse Robert.

Neville não questionou as ações de Olivier. Ele se lembrou do dia em que o conselheiro revelou a traição do rei. Olivier não tinha orgulho de servir Henrique. No princípio, talvez. Ele foi um dos primeiros a perder um ente querido para o sorteio do rei. A morte de sua esposa serviu de exemplo para os outros soldados. O próprio Henrique sempre falava com louvor sobre a dedicação de Olivier. O que foi para o conselheiro descobrir que o rei não tinha coragem de lutar na guerra?

— Nós tentamos matar Henrique — disse Robert. — Durante um ano só o que fizemos foi tentar assassiná-lo.

Houve um tempo em que Neville se revoltaria com isso, em que bushido falaria mais alto. Hoje em dia, nada importava. Na Boca da Guerra só havia mortos e monstros. Neville não se considerava um monstro.

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora