Capítulo 85: Neville - Pierre

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Neville não queria interagir Pierre. Preferia tomar o comando para si e controlar a situação como estava acostumado a fazer em Fabec, mas Tuen e Chambert se curvavam ao jovem da Fronteira e, com Fulbert na soleira da porta, Neville não podia arriscar brigas internas por poder.

Encontrou Pierre debruçado sobre a amurada, sozinho, assistindo o sol descer sobre Tuen, envolvendo a cidade em fogo platônico.

— Capitão Neville de Baynard — disse Pierre.

— De Fabec — corrigiu Neville.

— De Chambert, se quiser.

Neville nunca conheceu alguém que não desse a vida antes de ceder poder. Um pedaço dele queria acreditar em heróis satironeses, mas Sátiron não existia e Neville tinha trevas demais no sangue para confiar num desconhecido.

— Em que estava pensando? — perguntou.

— Não adianta fugir da Guerra — disse Pierre — ela já está aqui. Cabe a nós terminá-la. Precisamos de você.

Neville demorou a responder:

— Jurei lealdade a Henrique de Baynard. — Como continuar?

Honra é a única coisa sólida neste mundo.

Honra é a única coisa sólida.

Única coisa.

A coisa certa a fazer era quebrar seu juramento e Neville abriu a boca para dizer isso, mesmo quando alguma coisa dentro de si começou a esfarelar e ficar cinzento igual ao homem que ele tinha arrancado das trevas. Bushido foi o que manteve Neville são em Fabec. Bushido e o arco negro.

— Repita o voto — disse Pierre.

— Que voto?

— O que fez a Henrique.

Neville não se recordava das palavras. Só lembrava da mão grande, grossa, branca no seu ombro negro. Seu juramento torna meu o sangue que corre em suas veias. Sua honra une seu destino ao meu.

— Você conheceu meu pai? — perguntou Pierre. — Gregoire me contou que passaram por Carlaje. Ele sabe muita coisa, meu pai. Traduziu um livro uma vez de um historiador satironês que viajou o mundo compilando tradições de diferentes culturas, entre elas o modo como as pessoas juravam lealdade umas às outras ou ao seu país. 'A partir de hoje eu pertenço a esta nação. Juro protegê-la com todo o meu poder, com meu sangue quando preciso. Minha vida não é mais minha: é dela. Seu rei é meu rei; seu destino, meu destino.'

Neville sentiu as costelas comprimirem o peito ao ouvir seu próprio voto despencar da boca de Pierre.

— Qual é a sua nação, Neville? — perguntou Pierre.

— A Franária.

— Não quebre sua palavra. Honre-a.

Pierre apoiou os cotovelos na amurada. A chama estava extinta no horizonte, não se via mais Tuen.

Todos esses anos na sombra de Henrique, na Boca da Guerra; todo esse tempo protegendo um juramento que não precisava ser quebrado. As costelas de Neville eram lâminas. Robert.

— É tarde demais — disse Pierre.

Por um momento, Neville pensou ter ouvido a voz de Olivier na penumbra, as palavras ácidas pingando na amurada.

— É o que você está pensando, não é? — perguntou Pierre. — Que é tarde demais. Todos esses anos se debatendo entre sua honra e seu dever para com seu rei; sua honra e seu dever para com o que importa. Perceber agora que sempre teve escolha soa como um desperdício. Tanto já se perdeu. É tarde demais. É isso que sente?

Neville permaneceu quieto.

— E talvez seja verdade — disse Pierre. — Pode ser tarde demais para nós. Mas não para a Franária.

— Quem é ele? — Neville perguntou mais tarde a Líran.

— A história — ela disse.    

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