Capítulo 64 - Gregoire: Por causa de Pierre

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Como foi que Gregoire veio parar nessa cabana com um mistério fantasiado de elfo e dois cinzentos fantasiados de gente? Cascas de ovos vazias, os dois. Só aquele arco negro continuava sólido na mão do arqueiro. E Gregoire ali, velando pelos três, dia e noite, noite e dia, sem poder ir embora, sem conseguir escrever. Gregoire um dia seria grande poeta, mas a poesia ficava tímida na presença de cinzas; ridícula na presença daquele elfo extinto. Era culpa de Pierre. Desde que Pierre foi para a Terra dos Banidos, Gregoire nunca mais teve paz.

Foi no começo de uma tormenta que Gregoire tentou segurar o irmão pelo braço. Meio-irmão. Foi o mesmo que tentar impedir a neve de cair. Pierre pisou no Sangue congelado e atravessou o rio. Gregoire seguiu-o até a margem, mas o pé se recusou a tocar o gelo.

Em Carlaje, onde os dois moravam, o rio era largo e parecia ter vontade de virar lago. A Terra dos Banidos parecia tinta preta molhada na outra margem. Gregoire chamou o meio-irmão. Apesar de tudo, Pierre era a única família que lhe restava. O padrasto não contava.

O padrasto só levou Gregoire para dentro de casa porque ele era irmão de Pierre. Meio-irmão. Ninguém em Carlaje disse nada a Gregoire, mas ele sabia o que todos pensavam. Pierre era especial, não ele. Foi o pai de Pierre que veio de além Sangue, não o de Gregoire. O de Gregoire morreu normalmente, como qualquer humano comum, nas presas de uma criatura das trevas.

A criatura das trevas também veio de além Sangue, que nem o pai de Pierre. E agora Pierre caminhava para as trevas. Gregoire gritava e gritava, mas Pierre continuou se afastando sobre o gelo, a tinta preta dos Banidos contornando o corpo dele.

Um movimento dentro da cabana arrancou Gregoire da lembrança. Do outro lado da fogueira, a ilusão do elfo se desfez e o capuz sem rosto voltou. O Vulto despencou para o chão tal qual um balão esvaziando. O manto negro foi se aquietando na força da gravidade e, que alívio!, ainda havia um corpo embaixo. Mas será que estava vivo?

Um raspar suave às costas de Gregoire eriçou todos os pelos da sua nuca. Um dos espectros cinzentos se moveu. O homem grande e negro estudou os próprios dedos como se visse espécimens vivos de algum animal extinto. Um pedacinho de Gregoire achou aquilo irônico porque do outro lado da fogueira havia exatamente uma criatura extinta. O cinza se destacou do corpo do homem negro como pele de serpente, então esfarelou e caiu para o chão fazendo barulho de areia. Gregoire assistiu a tudo aquilo com olhos escancarados. Não percebeu o Vulto se levantar e levou um susto enorme quando o manto negro cambaleou e caiu no chão com estrondo.

O terceiro homem permaneceu deitado e cinza, exceto por uma linha estranha e preta amarrada ao seu braço esquerdo, que ele de quando em quando cutucava para coçar a pele embaixo. Os três pareciam sonâmbulos tentando voltar de um pesadelo.

Do lado de fora alguma coisaarranhou o vidro da janela e Gregoire viu galhos negros e finos que não estavamlá antes. Tudo aquilo tinha de ser culpa de Pierre.    

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