Capítulo 70: Jean

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Jean não gostava de Tuen, que cada vez mais cheirava a Pierre. Pierre estava nas vozes, nas telhas e nas rugas dos velhos. Jean não gostava de vir a Tuen, mas Chambert também cheirava a Pierre. Cheirava tanto, que Jean perdeu Leonard.

Leonard tinha um cheiro manso, transparente, que facilmente se perdia na multidão. Mesmo assim, Jean nunca o perdeu antes. Quando Jean estava longe de Leonard, sentia gosto de fogo. Os únicos sabores que Jean ainda sentia: sangue e fogo. Porque, quando queimaram o rabo dele, ele tentou apagar com a língua.

Sangue, fogo e ferrugem. A lâmina enferrujada da espada que o humano caolho deu a Jean era uma das poucas coisas no mundo que ainda tinham sabor. Jean sempre a carregava consigo, gostava de tirar ela da bainha e lamber a ferrugem até a própria língua sangrar. Não precisava mais dela como arma porque as pessoas não se colocavam no caminho dele. Só Pierre.

Jean não odiava Pierre. A aversão dele era instintiva. Jean era um sonho e Pierre, o despertar.

Jean pulou de um telhado para o beiral de uma janela. Um homem gritou. Jean tinha a vaga impressão de que esses gritos não aconteciam no passado e que as pessoas agora percebiam ele mais. Por outro lado, ninguém o enxotava. Ao contrário: saíam do caminho dele. Ele não podia imaginar a impressão que causava um homem grande, barbudo e bruto com uma espada enferrujada às costas entrando pela janela.

Ele não tinha curiosidade de saber por que as pessoas se mantinham nos mesmos caminhos térreos quando os telhados estavam livres. Gatos rosnavam por debaixo de telhas, mas nenhum cruzava seu caminho. Ratos, como sempre, fugiam.

O homem de dentro da casa encostou as costas na parede e Jean passou por ele até a outra janela, de onde saltou para o muro e do muro para o chão, pousando num beco. Quando se levantou, havia um homem e uma mulher na sua frente e uma onda de gente armada vindo em sua direção. Tirando o homem e a mulher, todos cheiravam a Pierre.

Joanna voltou de Chambert empurrando um carrinho de mão com panelas e tigelas limpas que ela limparia de novo chegando na Pluma. Gostava desta época do ano, logo antes de as flores abrirem, quando o inverno já tinha passado mas o calor ainda não tinha acordado. Gostava de Chambert, o único lugar que ela não sentia necessidade de limpar. Todo mundo dizia que a fortaleza era amaldiçoada, mas Joanna, que já havia acampado na Fronteira com a Caravana de Rimbaud, achava que o ar devagar de Chambert tinha jeito de sonho.

Ela havia amado Rimbaud. Foi há tanto tempo, mas foi a última vez que ela amou. Depois da epidemia, Joanna não pôde mais viajar. Não foi por medo de mais perigos. Ela também pegou a doença, mas sobreviveu. Só que o corpo dela não podia mais lidar com o movimento constante, com as provações, com os invernos na Fronteira. Rimbaud evitava a Fronteira pois sabia que seu povo a temia, mas as tormentas não tinham calendário fixo e não era raro eles ficarem presos na Franária.

O inverno no sul não era mais rigoroso que no norte, mas ele gelava a mente e a coragem. Chambert tinha fama de maldição, mas Joanna nunca viu motivo para temer o lugar. A Fronteira, sim, ela temia. A Terra dos Banidos nem sempre se contentava em ficar do outro lado do Sangue.

Ela pediu que Rimbaud ficasse com ela em Tuen, que aquietasse os pés e construísse um lar.

— Eu já construí um lar — ele disse — sobre rodas.

Joanna, que esperava ouvir ele dizer algo do tipo — Você é meu lar, eu ficarei onde você ficar — não voltou a se juntar à Caravana mesmo depois que seu corpo recuperou toda a força. A Pluma mal se sustentava, mas aquele lugar era concreto.

Então chegou Pierre e todos os anos que Joanna lutou para manter a Pluma finalmente fizeram sentido. Todas as vezes que ela quase desistiu, todas as telhas quebradas, cerveja amargada, vinho vinagre, tudo aquilo valeu a pena para hospedar Pierre, para ter uma cama onde colocar Vivianne, para ajudar os dois queimados e meio, para Líran.

Joanna nunca tinha visto Pierre na Fronteira. Ele contou que morava em uma vila diferente daquela onde a Caravana sempre acampava. Se chamava Carlaje e lá o Sangue era largo e manso e o dragão se banhava. Joanna nunca foi ver o dragão. Tinha medo. Ninguém da Caravana queria ir ver o dragão. Mesmo na Fronteira Joanna nunca tinha visto alguém citar a criatura sem um tremor de cílios ou da garganta.

— Você não tem medo dele? — ela perguntou a Pierre.

— Não.

Ela percebeu que alguns clientes da Pluma ouviram a conversa e já correram a espalhar a palavra. Sim, valeram a pena todos os anos de luta para ser dona da Pluma quando Pierre veio a Tuen.

E agora, Maurice. Joanna se perguntou se ainda havia esperança para ela e o amor.

Até pouco tempo atrás, nem eu acreditava que isso existisse, mas olhe para nós. Maurice não sabia dar nome à esperança. Ele disse isso. Ele massageou os calos dela e disse isso. Talvez isso também fosse concreto. Isso deu a Maurice coragem para limpar o balcão ao lado de Joanna. Ela gostou de ter alguém polindo copos junto ao seu cotovelo.

No portão de Tuen, o vigia disse:

— Bom dia, Joanna. Luc.

Logo atrás de Joanna estava o irmão caolho de Maurice.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou Joanna.

— Procurando Jean. Leonard se preocupa quando Jean some de vista.

Na verdade, ela queria saber o que ele estava fazendo às suas costas. Os assuntos dele em Tuen não eram problema dela, mas ela levou um susto quando o viu, porque não percebeu ele se aproximar na estrada. Achou que ele ficaria com Pierre, Gaul e Leonard, que exercitavam soldados desde muito cedo do outro lado de Chambert.

— Jean às vezes vem sozinho à Pluma — disse Joanna. — Mas logo vai embora.

— Se me permite, vou com você até lá.

Até mesmo Erla, que ouvia a voz da Guerra, estava paralisada. E as janelas das casas tuanesas, Olivier notou, refletiam a luz do sol em caleidoscópios de tristeza, medo e asco. Tudo terminou em um minuto, que ficou gravado em detalhes na mente de Olivier. O baque atrás dele bem no instante em que os soldados de Maurice avançaram, então uma besta cheirando a ferrugem atravessou o beco e se chocou contra os homens armados. Agora havia dez corpos mutilados no chão, Jean pisando em vermelho morto, segurando a lâmina enferrujada ao lado do corpo, encarando Maurice.

— Não — murmurou Olivier.

Jean se moveu devagar. Tudo se moveu devagar. Na boca do beco despontaram duas figuras. Uma alta, com um quadrado preto tapando o olho direito, a outra rechonchuda e loira. Joanna gritou:

— Maurice!

Em seguida a espada de Jean abriu um sorriso sem dentes na garganta do prefeito.

Luc, estático, viu Jean se aproximar, como um animal que encontra um lugar conhecido. Jean parecia nem se dar conta de que havia matado onze pessoas. Joanna passou por eles e se ajoelhou em sangue, abraçou o corpo amolecido de Maurice e gritou:

— Porco! — a Jean, que virou a esquina lambendo os bigodes.

Jean se voltou ao som daquelavoz humana com entonação de Pierre. Alguma coisa ele ia fazer, mas nem elemesmo soube o que era, porque não pensou a respeito e o humano caolho já estavabloqueando sua passagem, fazendo uma espécie de cerca com os braços, guiandoJean para longe dali.    

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora