Capítulo 46: Sáeril - O lobo de Sátiron

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Na Terra dos Banidos, a brisa tinha hálito de urso polar, as árvores cheiravam a magia, o ar se difundia em trevas. No entanto, mais do que magia e trevas, era mistério que dominava aquela terra. A própria névoa que preenchia o vazio entre árvores era em si um mistério, assim como as folhas secas de outono que nunca pousavam no chão, mas continuavam a rodopiar entre troncos, às vezes se prendendo a um galho, verdejando por um instante, para então voltar a rodopiar secas no ar.

As árvores sussurravam e inclinavam um pouco os galhos para o manto negro que caminhava sobre raízes tão antigas e longas, que tomavam a terra como teias de aranha. De vez em quando ele respondia no mesmo sussurro suave, som de seiva correndo nas veias. A treva fina que permeava a névoa se dissipava sob a magia dele, mas voltava em pregas após sua passagem, se agitava um pouco, então se acalmava.

Sáeril procurava uma estrada. Na Terra dos Banidos, as estradas sabiam se esconder. Sáeril desalojou uma trilha de montanha e uma rua de ladrilhos antes de encontrar a estrada que procurava. Ela estava no oco de uma árvore milenar, nada disposta a trabalhar. Sáeril esticou um filete de seu poder para chamar a atenção da estrada, que se empertigou dentro da árvore. A magia de Sáeril foi abrindo caminho e a estrada foi seguindo e se revelando feito água correndo por um novo veio. Ou, como Sáeril costumava dizer, igual a um gato caçando reflexo de luz.

O perigo não era a estrada, mas as outras criaturas das trevas que habitavam a Terra dos Banidos. Nem tudo achava magia divertido. Mesmo o gato, se caça, é porque enxerga ali uma presa. Mais de uma vez Sáeril teve de apagar seu pequeno foco mágico para deixar passar uma presença mais forte e ominosa. Nesses momentos, a estrada farejava aqui e ali, arqueava-se, curvava-se e se desviava do caminho certo, até Sáeril acender de novo a luzinha mágica. Ele sabia o caminho mas, sem a estrada, Sáeril jamais chegaria a seu destino. Assim funcionava a Terra dos Banidos.

A estrada passava por Fernuália, primeira cidade de Sátiron, construída no local onde Yukari Nakamura primeiro pisou neste mundo. Sáeril lembrou-se de Fernuália como ela foi no final: congestionada com vozes de todos os continentes, avenidas largas, com canteiros no centro, calçadas pintadas de branco, ruelas vigiadas por janelas e flores, telhados vermelhos. Hoje, as avenidas estavam abraçadas em cipós (as que ficaram aqui e não foram embora, se aninhar em árvores, como a estrada que Sáeril agora trilhava). Os tetos vermelhos haviam ruído; todos, menos um: a pousada do Corvo Azul continuava viva na Fernuália sepultada. No passado, mistérios, magos e também gente muito comum se hospedou no Corvo Azul. Agora, somente mistérios passavam ali. A pousada tinha três andares, um sótão, muitas janelas e foi fundada por Sáeril.

Não era para visitar o Corvo Azul que Sáeril havia vindo à Terra dos Banidos. Ele devia continuar seguindo a estrada, que estreitava depois de Fernuália, tornava-se uma trilha que só mistérios enxergavam. Essa trilha o levaria até os três lobos de Sátiron, pois Sáeril precisava de ajuda. As trevas da Franária tinham vida e Sáeril, sozinho com sua magia, não poderia detê-las. Magia e trevas não se anulam: elas só não se misturam.

Havia mistérios como Sáeril, que haviam deixado de ser o que eram (no caso dele, um elfo) e passaram a ser algo que não existia. E havia mistérios como os lobos de Sátiron, que sempre foram mistérios e eram, em si, um poder. Sáeril buscava ajuda de um desses poderes.

A porta do Corvo Azul estava aberta e Sáeril entrou. Nostalgia, que coisa bonita: inútil, mas tão querida. Não havia nada de azul no Corvo Azul a não ser a placa sobre a porta de entrada, com um pássaro de madeira em voo. Dentro, a pousada continuava do jeito que sempre fora: cheia de plantas, cheia de lâmpadas em redomas coloridas (aqui, os feitiços ainda reinavam) e com uma tapeçaria cobrindo a parede ao fundo. Na tapeçaria havia uma floresta cheia de detalhes e animais escondidos atrás de árvores, dentro de lagos. O mais imperceptícel desses detalhes era uma rocha à beira de um riacho, onde uma raposa se esticava ao sol. Se você olhasse bem atentamente, perceberia que, na sombra dessa rocha, estava um sapo. E ele olhava para você.

Sáeril tinha orgulho da tapeçaria. Arte que envolve mistérios era rara de se encontrar. Nunca se sabe o que pode acontecer quando se tenta capturar a impressão de um mistério.

Lar. Palavra engraçada, tão pequena, sem grande sonoridade e que, no entanto, significava tanto. Fernuália, o Corvo Azul, aquilo foi o lar de Sáeril um dia, quando ele ainda era elfo. Hoje ele tinha um novo lar: Lune. E precisava de ajuda para proteger Vivianne e Marcus. Ainda havia um longo caminho a percorrer pela estrada que virou trilha. Ele tocou o sapo e a raposa com a ponta do dedo no mesmo instante em que lá no norte Vivianne erguia a lona da tenda real. No momento em que Sáeril desencostou os dedos da tapeçaria, ele se sentiu esmagado como um inseto por uma onda de fogo líquido. Sua magia queimou em fogo de trevas e Sáeril caiu sobre um joelho.

Vivianne.

Ele se ergueu sobre pernas trêmulas, pensou em voltar imediatamente a Lune, mas de que adiantava? Não havia nada que ele pudesse fazer por Vivianne agora. Precisava encontrar os lobos.

Ele sentiu a presença do lobo antes de ver a sombra felpuda esticar para dentro do Corvo, longa na luz do poente. O lobo cinzento farejou o ar. Sáeril não esperava encontrá-lo em Fernuália. Imaginava ter de percorrer a estrada até o fim antes de encontrar um lobo mistério. Fernuália era apenas o começo do caminho.

O lobo sentiu a pergunta na mente de Sáeril.

— Eu vejo o movimento das trevas vazando pela Franária — o lobo não falava, as palavras emergiram na mente de Sáeril — puxados por aquele rodamoinho no centro da Franária.

— A Boca da Guerra — disse Sáeril.

— E agora, o dragão — disse o lobo. — O tempo é curto para a Franária. Estenda a mão.

Sáeril obedeceu e, sobre o couro da luva preta, surgiu uma castanha.

— É uma semente da árvore dourada — disse o lobo. — Ela contém o poder da sua fruta. Leve para Pierre, ele é o leme da história que a águia convocou.

Sáeril sentiu veios de luz escorrendo da castanha feito mel pelas rugas de sua luva negra. Quem era Pierre?

— Duas vidas correm risco de desaparecer em trevas — disse o lobo. — Você deve procurá-los e trazê-los de volta.

— Quem?

— O Capitão Neville de Baynard e o Príncipe Frederico de Patire. Eles definham em trevas na Fronteira. Sem eles, a história não tem mastro nem vela.

Sáeril gostaria de abrir as asasas de sua magia e soltar velas ao vento, mas na Terra dos Banidos as regrassão outras e a magia tem de correr cuidadosa. A estrada que ele havialudibriado até Fernuália cansou de caçar reflexos e ignorou Sáeril agora. Eleteve de voltar sem caminho pelos chãos cinzentos de trevas em direção àFronteira, em direção à Franária.    


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