Capítulo 105

1 0 0
                                    


Enquanto eu viver, Lune não cairá.

— Marcus de Lune

Vivanne enxergou Lune na distância, brevemente, num intervalo entre duas ondulações geográficas. Algo estava errado. Lune logo desapareceu atrás de cortinas de terra e relva, mas quando ressurgiu, Vivianne e Menior estavam próximos o bastante para ver a muralha rachada, as torres caídas, a cidade queimada.

Parte de Vivianne se afogou em sentimentos, desses que contraem o peito, turvam a vista, estrangulam. Esse pedaço de si mesma, Vivianne trancou como compartimentos inundados de um navio indo a pique. Procurou manter-se na superfície de si mesma. Conseguiu manter a voz firme, embora muito baixa:

— Se houve sobreviventes, estarão em Vaguilar.

Vaguilar era uma cidadezinha encarapitada na encosta da Onda. Já existia antes da Guerra, antes mesmo do Império, restos da Era Negra. Ninguém sabia por que foi construída: desconfortável e fria, como as rochas úmidas da própria Onda, longe de campos, difícil de se alcançar, sem nenhum valor estratégico. Um pequeno exército poderia se esconder ali, e era fácil defender Vaguilar, pois a passagem era estreita e só passava um homem de cada vez. Por esse mesmo motivo, um grupo pequeno de inimigos conseguia sitiar a cidade, cortar seus suprimentos. Um beco sem saída. A cidade em si não tinha como produzir comida. Algumas macieiras esquálidas resistiam em amontoados de terra trazidos da planície, nada mais.

Nos últimos duzentos anos, Vaguilar foi usada como refúgio em caso de ataques nórdicos. Farheim e Inlang não se importavam com povo ou território, simplesmente vinham, pilhavam, iam embora. Matavam quem encontrassem pela frente, mas não perdiam tempo perseguindo os que escapavam.

Vivianne disse a Menior que fosse a Vaguilar.

— Eu investigarei Lune — disse ela. — Não foi o dragão quem a queimou, ou não restaria nada.

Menior estudou-a, preocupado. Admirou-lhe a coragem e desejou não ter de deixá-la sozinha, mas no reino da Guerra não cabia simpatia.

— Voltarei a Lune assim que possível — disse o mensageiro negro. — Use isto. — Tirou do braço um bracelete de couro e deu-o a Vivianne. — Gente da Fronteira reconhecerá a pulseira.

Vivianne não deixou transparecer o medo. Arrependeu-se de ter impedido Bojet e Germon de segui-la.

— Quando Pierre acordar, precisará de vocês em Chambert — foi o que ela disse.

E agora ela estava sozinha com a carcaça de Lune.

Pensou estar exausta demais para sentir tristeza. Não era verdade. Conforme percorreu as pedras tombadas de seu lar, Vivianne viu os espaços vazios que uma vez foram quartos, saguões, cozinha. Chorou.

Marcus prometeu que Lune não cairia enquanto ele vivesse. Vivianne tentou evitar a pergunta que penetrava sua mente, mas esse tipo de medo em forma de dúvida persiste, cava buracos no cérebro, decepa outros pensamentos. Marcus estava morto. O pior foi a forma como o medo se fez na sua mente: sem ponto de interrogação.

Ela encontrou os restos mortais da escada que levava até seu quarto, seus mapas, seu mundo em forma de tapete. Só o que restava da torre era um pedaço de plataforma aberta ao vento. Vivianne subiu ao que restava do chão de seu quarto, sentou-se encostada a um pedaço de parede, abraçou os joelhos, escondeu o rosto nos braços.

Horas mais tarde, Vivianne ouviu passos. Endireitou as costas, ficou muito quieta, prestando atenção ao som de botas em pedregulho solto. Através de uma rachadura nas paredes, ela viu ombros quadrados em forma de bloco.

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora