Capítulo 106

1 0 0
                                    


Na Torre Escondida de Chambert, Fregósbor tentou preencher a ausência de Yukari com suspiros. Suspirou dentro do cabinete de chás, por sobre as estantes, entre as folhas de papel que cobriam as paredes do corredor infinito.

Ele mesmo preparou chá. Não sabia fazê-lo tão bem quando Yukari, mas não tinha importância porque ele detestava chá. Só gostava do cheiro.

— É um gosto adquirido — disse Yukari certa vez.

— Inadquirível, no meu caso.

Ela sorriu. Ele adorava os sorrisos dela: todos tinham significado. Aquele, por exemplo, dizia:

— Um gosto que você não merece ou que não te merece.

Tudo o que Yukari fazia, de chá a sorrir, era doce e amargo, sério e chiste. Ela era eterna, porém morria.

A primeira vez que Fregósbor se jogou acordado no reino dos sonhos, foi ela quem veio resgatá-lo. Ele havia se perdido, afundado demais, teria se afogado em irrealidades. Yukari puxou-o de volta, repreendeu-o naquela voz de veludo negro.

— Não achei que fosse perigoso — defendeu-se Fregósbor. — Eram só sonhos.

— Só sonhos! Nada é apenas . Vá procurar Sáeril, adquira um pouco de conhecimento antes de embrenhar por caminhos desconhecidos. Adquira mapas, entenda a consistência daquilo onde você pisa.

— Eu não estudo mapas cada vez que pego uma estrada.

A comparação entre estrada e sonho era absurda e Fregósbor sabia disso. Yukari não respondeu.

Fregósbor era jovem na época. Rebelava-se contra o que considerava inútil. Achava que a melhor forma de aprender era pela experiência e a verdade é que nunca mudou de ideia, mas aprendeu a preparar-se para essas experiências. Sáeril nunca havia estudado sonhos a fundo, mas a introdução que ofereceu bastou para que Fregósbor pudesse continuar sua pesquisa sozinho e descobrir a verdade por trás do óbvio.

Realidades interferem com sonhos em traços claros e aparentemente distintos, ao menos na superfície. Quanto mais Fregósbor estudava, mais intrínseca se tornava a presença de um no outro. Sonhos, ele entendeu, influenciam realidades com a mesma intensidade. Na superfície, declaradamente presentes, nas camadas mais profundas, realidade e sonho se misturam até não se poder mais distinguir um do outro.

Assim como uma realidade iluminada ameniza os sonhos mais agudos, sonhos podres corroem as ligaduras de realidade como ratos roem cordas velhas. Sem essas ligações, passar de uma realidade a outra, mudar a vida, o mundo, para melhor ou pior, não importa: a passagem se dificulta e aquele que tem as cordas roídas fica estagnado numa vida imutável.

Fregósbor terminou de preparar o chá, saboreaou a fragrância sem nunca aproximar a bebida dos lábios. As cordas da Franária estavam roídas, mas ele pensava ter encontrado um jeito de remendá-las.

Pierre Bateu à porta. Fregósbor serviu-lhe um pouco de chá e disse:

— Meu jovem, você fez umas coisas interessantes com sonhos alheios em seu caminho rumo ao despertar. Creio que eu e você juntos, através de sonhos, podemos remendar umas cordas aqui na Franária.

— Me parece que você entende muito de sonhos — disse Pierre. — Mas, eu? Por que precisa de mim?

— A Guerra tem um controle muito forte sobre os sonhos franeses. Eu teria de usar toda a minha magia para empurrar suas trevas por um instante. Elas retornariam em seguida como uma onda. Se eu tiver acesso a outro tipo de poder, posso fazer mais do que apenas afastá-las momentaneamente: posso remendar sonhos rompidos.

— E você acredita que eu tenho esse poder.

— Você tem mão para moldar sonhos.

Pierre tinha eram muitas dúvidas. Não deu voz a nenhuma.

— É possível?

— Possível, sim. Perigoso também. Nada fácil — disse Fregósbor.

— É necessário?

— Imprescindível.

— Quando começamos?

— Na hora em que os sonhos despertam — disse o mago.

Pierre retirou-se e Fregósbor estudou a parede da Torre Escondida. Seguiu para além da pedra. As sobrancelhas grossas se beijaram no topo do nariz pontudo. Havia mais inimigos lá fora do que Chambert sabia. A Guerra não se renderia jamais. Então Fregósbor viu outra coisa, pequena e negra, indo em direção ao Norte através de florestas, seguindo riachos. Uma figura encapotada caminhando decididamente em direção à Boca da Guerra.

Você ainda está conosco, pensou Fregósbor.

Sáeril, o Vulto, sentiu-se observado, reconheceu a textura enrugada da magia de seu antigo pupilo.

— Fregósbor. Sentimos sua falta.

Fregósbor lembrou-se de um tempo em que ele foi criança, em que Sáeril não se camuflava em mantos e Nakamura ainda não havia morrido sua primeira morte neste mundo. Aonde foi aquele tempo?

A lugar nenhum. Nós é que viemos para cá. Fregósbor entrou no corredorde cartas não lidas. Deixou para trás os tempos em que ele não mais vivia,concentrou-se em Pierre e nos passados futuros.    

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora