Capítulo 66: Vivianne - A tormenta humana

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O ser humano encontra rotina onde estiver, pensou Vivianne. Fazia uma semana que Vivianne acordava, tomava café, tentava encontrar um jeito de voltar a Lune. Fazia uma semana que a perna latejava quando ela se aproximava dos portões de Tuen. O dia em que ela tentou ir mais longe apesar da dor, Coalim encontrou ela desmaiada no meio da rua.

— É a história ancorando sua perna — disse Líran.

Todos os dias Líran perambulava pelos corredores da Pluma e se perguntava, dava para ver as dúvidas enrugando a testa dela, mas Vivianne não sabia o que ela tanto se perguntava. Todos os dias, rondando os outros mortais, se perguntando coisas; lendo passados invisíveis a todos os outros, sem entender a própria história.

Todos os dias Joanna limpava a Pluma e Coalim dizia:

— Está tudo limpo.

— Eu sei — disse Joanna como sempre dizia e continuou limpando como sempre fazia. Se pudesse, Joanna limpava o ar de Tuen.

Germon e Bojet de manhã limpavam a Pluma limpa de Joanna. Não discutiam, só limpavam, então se sentavam, Bojet lendo poemas, Germon cutucando casquinhas de sua pele queimada.

Vivianne se arrepiou e virou para o outro lado. Líran estava à janela, estranhamente parada. Como é que alguém pode estar estranhamente parado? Vivianne pensou. E no entanto lá estava Líran, parada igual a uma núvem, ao mesmo tempo móvel e imóvel. Por que será?

Na noite anterior, Líran abriu a janela e apoiou os cotovelos para ver as estrelas. Distantes, inalcançáveis estrelas que uma vez existiram dentro de Líran.

— É estranho ter passado — ela disse ao céu. — É estranho ter futuro.

Ao lado dela, na janela, estava uma águia. Tinha as penas murchas e bico quebradiço.

— É estranho ter passado — disse a águia. — E não ter futuro. Diga-me, você que já foi mistério: como é terminar?

Líran nunca tinha pensado em si mesma como algo que terminou. Para ela, tornar-se mortal foi um começo, não um fim.

— Você vai testemunhar o meu fim — disse a águia. — Eu já não enxergo, a Guerra me cegou. Mal posso me mover. Minhas penas pesam como se eu tivesse mergulhado em óleo. Eu esperava que meu povo me ajudasse, mas não sabia que meu estado afetava tanto as decisões deles. Eles não se movem porque eu não me movo. Eles estão no escuro porque eu estou cega.

— Mas você tem a história — disse Líran.

— Uma história sem a voz de Nuille. Não tive forças para conjurá-lo. O que eu tinha ainda de poder, gastei puxando esse fio de destino que carrego no bico mas, Líran, ex-mistério, eu não tenho força para fazê-la acontecer. Dependo desses mortais e pensei que o arqueiro — disse a águia — pensei que o príncipe. Mas nenhum dos dois. Pensei que o mago-mistério, pensei que Lune, mas eles se movem tão devagar.

— Existe Pierre.

— Pierre está só, não posso ajudar.

Pierre está só, pensou Líran. Mas eu estou com ele. Que diferença fazia ela estar ali? Será que era esse o significado de ser mortal: não fazer diferença? Eram essas as perguntas que ela se fazia naquela manhã quando Vivianne tomou seu café, Joanna limpou seu balcão apesar de Coalim garantir que estava limpo, Bojet leu seus poemas e Germon coçou cicatrizes. Maurice implorava que Pierre não partisse, mas Pierre aquela manhã desceu com a mochila. A espada satironesa estava presa à lateral da mochila e ele vestia suas roupas de viagem.

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora