Capítulo 100

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— Conte-me sobre você — diz Pierre. Os dois sobem a ladeira mansa, afastando-se do Sangue, da Terra dos Banidos e, como só sonhos permitem, da Fronteira. — Você salvou minha vida. Por quê?

— Para me encontrar.

— Funcionou?

— Em parte. Não é instantâneo retornar das profundezas de eras idas. Muito de mim ainda está fora do alcance. De certa forma, é como ser jovem outra vez: ciente de que há sabedoria e poder ao seu redor, incapaz de enxergá-los. A diferença é que o conhecimento não está lá fora, mas aqui dentro — aponta os dois dedões para o próprio peito.

Caminham agora por campos, mas Pierre vai em direção a uma estrada. Ele não sabe onde está, mas, em sonhos, detalhes como a localização de uma pessoa não interferem na direção que devem tomar. Pierre busca uma estrada, portanto uma estrada brota sob seus pés.

Dois cavaleiros vêm na direção oposta. Pierre puxa Fregósbor para a beira da estrada mas não é necessário, pois os cavaleiros se detém.

— Eu conheço esses dois — diz Pierre. — São Thaila e o pai Eslariano.

Thaila protege os olhos do sol e Pierre olha na mesma direção.

— O que é? — pergunta o Eslariano.

— Um exército — ela diz.

O pai fica em pé nos estribos e aperta os olhos.

— Só pode ser Henrique — ele diz. — Olivier conseguiu arrancar o rei do Esmeralda.

Nesse momento uma coisa acontece que parece fazer parte de um sonho, mas ela acontece na realidade de Thaila e do Eslariano. Um homem franzino surge no meio da estrada, chutando como se estivesse experimentando uma calça difícil de vestir. Ele está nu. Dá para ver as costelas através da pele e os pulmões se contraem quando ele se percebe pelado na frente dos dois padeiros.

— Olá — ele faz de conta que está acostumado com a situação. — Desculpem, eu ainda não sei controlar isso.

— Leonard — diz Thaila.

— Ah, Thaila, faz tempo.

— O que você está fazendo aqui?

— Eu não sei bem onde é aqui, mas moro em Chambert agora e estive, ã, estive acidentado — Ele coça o nariz se sentindo ridículo, não mais por estar no no meio da estrada, mas por ser ser um Acidentado acidentado. Então ele percebe o exército. — Onde estamos? — ele pergunta. — Aquele é Fulbert?

— Não, é Henrique — diz Thaila. — Estamos há uma semana de Chambert, num ritmo moderado.

— Vou avisar Neville — diz Leonard e desaparece.

— E quanto a nós? — pergunta Thaila.

— Vamos voltar — diz o Eslariano. — Nós queríamos o exército de Debur, não queríamos? Pois ele está aí.

Pierre e Fregósbor deixam a poeira dos cavalos assentar e voltam à estrada.

— Foi a primeira vez que você saiu da Fronteira? — pergunta Fregósbor.

— Conheço bem a Franária. Sou um dos mensageiros da Fronteira e nós percorremos diversos caminhos. Seguimos o exemplo dos Mensageiros de Sátiron, mas não somos diplomatas nem feiticeiros, só observadores. Eu viajei muito menos do que Menior e Fulion porque eu voltava sempre para o dragão. Os dois lugares onde eu estava em casa: sozinho na trilha ou ao lado do dragão. Em qualquer outro lugar, ao lado de qualquer outro, mesmo Menior e Fulion, eu me sentia diferente, até errado, como um floco de neve no verão. Eu não sabia ser igual às outras gotas de chuva.

— Então agora, que você sabe o que o dragão pensa de você, o único lugar onde você se sente bem é na trilha. Aqui, nesta estrada.

Pierre se detém. Já é possível enxergar Chambert. As torres cor de areia contra o fundo azul vibrante do céu de primavera.

— Não — diz Pierre após alguns momentos. — Eu me sinto bem em Chambert. Existe gente que me faz sentir normal.

— Quem? — pergunta o mago.

— Vivianne. Ela não enxerga as diferenças entre as pessoas. Não sei se é cegueira ou sabedoria, mas se eu chegar para ela e disser que fui à Terra dos Banidos, que venho da Fronteira, que aprendi tudo o que eu sei com um dragão e ainda fui carregado por um lobo de Sátiron que nem um gato filhote, ela vai me dizer: "E onde você guarda a manteiga?"

Fregósbor balança as barbas de tanto rir e Pierre ri junto com ele.

— Obrigado — diz o mago. — Eu tinha me esquecido de como dar risada.

— Onde estará Vivianne agora?

É Pierre pensar em Vivianne que a estrada se estreita numa trilha sinuosa dentro de uma floresta fechada. Duas pessoas estão na trilha, puxando os cavalos pelas rédeas, tropeçando em raízes espalhadas pelo chão em padrões tão densos quanto as rugas no rosto de Fregósbor. Na frente, Menior. Vivianne segue logo atrás. Pierre vê o cansaço assentado nas pálpebras dela. Seu cabelo, cheio de folhas, está preso numa trança. Ela usa calças marrons e uma túnica verde musgo.

— Eles estão indo para Deran — diz Pierre. — Para Lune.

— Vivianne foi procurar aliados contra Fulbert e Henrique — diz Fregósbor. — Foi ela quem nos encontrou.

Nos? — pergunta Pierre. — Você não estava sozinho?

A floresta se movimenta, as folhas dos arbustos ganham formato de estrela, sobem paredes, emolduram um painel de mármore branco. Um lobo cinzento repousa à sombra de uma árvore dourada.

As duas sobrancelhas de Fregósbor se erguem com a surpresa. Pierre não conhecia o jardim das sombras, nem sabia que ali estava a porta para a torre escondida, no entanto seu sonho o traz automaticamente para ali e o lobo cinzento lhe dá silenciosas boas vindas.

Pierre passa a mão no pescoço onde está a cicatriz de meia lua e atravessa o painel com Fregósbor. Do outro lado, espera-os uma criança de olhos puxados.

— Você também mora aqui? — pergunta Pierre.

— Não mais. Estou de partida — diz Yukari.

— Eu gostaria que ficasse — diz Fregósbor.

— Eu sei, mas não faço parte desta história. Devo partir antes que ela me agarre. Queria apenas me despedir.

Fregósbor amassa Yukari num abraço cheio de barba.

— Eu a verei novamente? — pergunta o mago.

Yukari segura o rosto de Fregósbor com as duas mãos. Aquela pele murcha, suave e frágil, como papel milenar. Yukari vira-se para Pierre.

— Deixo-o em boas mãos. — O modo como ela diz aquilo, encarando um, segurando o outro, não deixa claro quem ela deixa nas mãos de quem.

Ela cruza o painel, parte para o Sul, para a Fronteira. E além. O encontro com um mistério faz Pierre pensar em outro mistério que ele conheceu na Franária.

— Onde está Líran? — Pierre procura, mas Líran está além dos limites do seu sonho. Tenta seguir o rastro dela, mas só encontra um príncipe cinzento, sozinho e em pé na frente de uma locomotiva vermelha.

— Preciso acordar — diz Pierre.

Fregósbor observa adesenvoltura com que Pierre se movimenta por sonhos de realidade. O rapaz temtalento para lidar com sonhos, no entanto, até agora ele está envolto na magiade Fregósbor, e não fez nada realmente impressionante. Ao menos não até entrarno pesadelo de Frederico.    

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