Capítulo 56: Leonard Acidentado - Dissidentes de Debur

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Debur havia se transformado numa grande carcaça com o Esmeralda no centro, onde Henrique continuava entocaiado. Olivier chegou, eliminou a revolução e foi embora sem colocar Debur em ordem. Ele apagou os líderes da revolução mas não colocou ninguém em seu lugar. Soldados se dispersaram. Uns ficaram com o rei, por inércia, outros foram procurar Neville em Fabec, mas Leonard não sabia o que eles fizeram quando descobriram que Fabec não existia mais.

Deran ficou sem governo e sem lei. Bandoleiros tomaram a cidade: ladrões, assassinos e coisas piores. Ninguém andava sozinho. À noite, as pessoas se amontoavam em esconderijos feito ratos. Um dia, surgiu um homem. Ninguém sabia de onde ele vinha, nem quem ele era. Andava com vagar felino, olhos semi-cerrados, sozinho.

Sozinho, não: com Leonard Acidentado.

Os dois caminhavam despreocupados pelas ruas, como nos tempos em que a caravana de Rimbaud ainda visitava Debur. O homem desconhecido tinha barba negra e bigodes brancos. Foram entocaiados e atacados, mas o de barba preta e bigode branco matou seus agressores com as mãos. Lutava com selvageria e desenvoltura. Brincava de matar, nem precisava de armas.

Às vezes, depois de matar, ele se sentava ao lado dos corpos e dava umas dentadas na carne morta ainda morna, mastigava ela crua e engolia com regalia.

— Este é Jean — disse Leonard a quem perguntava.

Outro homem se juntou a eles. Este, Debur já havia visto e mantinha distância. Até os assassinos se afastavam dele: um homem caolho, com um pedaço de couro cobrindo o olho perdido. O couro estava costurado à própria pele. O caolho carregava uma espada enferrujada de sangue. Ele dizia:

— Para que limpar, se vou sujar de novo?

Jean, o caolho e Leonard Acidentado. Qualquer coisa que os antagonizasse morria. As pessoas começaram a segui-los por proteção. À sombra deles surgiu uma espécie de lei do mais forte.

— Jean não é humano — disse Leonard — mesmo assim, as pessoas o seguem.

— O povo segue monstros — disse o caolho — porque monstros têm poder.

— Melhor seguir um monstro do que se tornar um monstro, supunho — disse Leonard.

— A gente pensa que, se o monstro for na frente, tudo o que fizermos está perdoado — disse o caolho. — Se o monstro for na frente, ele abrirá caminho e nós poderemos consertar tudo depois. Mas a verdade é que a gente se molda à sombra daquele a quem seguimos.

— Tem certeza?

— Eu servi em Patire — disse o caolho. — Eu servi Fulbert.

Um dia Jean saiu de Debur. O caolho foi junto, o Acidentado foi junto, um monte de gente seguiu, civis e muitos soldados.

— É gente demais — disse o caolho na estrada. — Jean é um bom monstro, mas não é um bom líder. O povo precisa de ordem.

— Você pode comandá-los — disse Leonard. — Você pode ao menos organizar os soldados que vieram conosco.

O caolho riu sem humor.

— Estou cansado. Não passo de sombra. Faça você.

— Você acha que é sombra, mas é homem — disse Leonard. — Eu sou um acidente.

O caolho não se importava. Aquele povo podia todo se matar que, por ele, não fazia diferença. Leonard lembrou-se de todas as vezes que Maëlle, a bibliotecária de Debur, falou em cinza. Aquele homem sem olho tinha cinza no lugar de alma, existia só por inércia. Leonard pensou na mãe de Neville, no pai de Neville, em Neville. Um Neville colocarua ordem naquele caos.

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