Capítulo 60: Gregoire - Na Estrada da Fronteira

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A Fronteira tinha uma só estrada, que beirava o Sangue. Por essa estrada, num fim de tarde qualquer, indo de Lourdes até Carlaje, rodava uma carroça cheia de gemidos. Os lamentos das rodas de madeira tinham ecos diferentes dos dois lados da estrada. À esquerda, onde a floresta da Fronteira estava acinzentada por trevas do norte, o rangido se esfarelava como gemidos saídos de gargantas secas e arenosas. Do lado do rio, onde as trevas dos Banidos eram antigas, mais negras e cheias de mistério, o gemido rodopiava, se adensava e ganhava consistência de suspiro.

A carroça, quem guiava era um jovem de dedos longos, manchados de grafite, sem calos. Ele tinha pele quase branca, cabelos quase lisos, nariz quase reto. Chamava-se Gregoire e queria renomear os fenômenos do mundo. Com as rédeas soltas no colo, as mulas sacudindo cabeças sonolentas, Gregoire escrevia em um diário novos nomes para as trevas. Porque lhe parecia muito sem imaginação chamar trevas de trevas só porque eram escuras; cinza de cinza só porque roubava cores.

Escuridão – Praga – Peste – Barata da Alma – Balalmarata...

Se não fosse por essa guerra interminável, Gregoire seria um grande poeta.

Trevas – Savert – Versat – Versátil (as trevas eram inegavelmente versáteis, se qualquer coisinha podia respirá-las e ganhar vida) – Sravet

Gregoire jogou a cabeça para trás. Quem no mundo diria Sravet ao invés de trevas? O céu acima da estrada da Fronteira parecia um mosaico de folhas, garras e céu. A maioria das árvores já havia começado a verdejar, mas as retardatárias – sempre havia retardatárias, que hesitavam entre permanecer dormentes e sombrias com a floresta do outro lado do Sangue e abrir as folhas para uma nova primavera – as retardatárias eram muitas este ano. Talvez Mestre Combelain tivesse razão: as trevas estavam expandindo bem debaixo de todas as narinas, mas ninguém enxergava. Trevas cegavam. Apesar de que Gregoire tinha a prova de que elas estavam ativas, como vulcão em erupção, mas de modo muito mais terrível. Quem morre de trevas morre sem perceber.

As mulas pararam de andar. Não foi uma parada brusca, mas Gregoire se espantou porque aquelas mulas moviam as pernas no mesmo ritmo que o Sangue espreguiçava as águas. Mulas que cresceram respirando as névoas da Terra dos Banidos seguem sempre numa sonolência móvel, sem descanso e sem fim. Elas nunca aceleravam, mas também nunca paravam.

No meio da estrada estava um vulto. O manto negro se despejava pela largura da estrada como inundação. Não tinha rosto. Gregoire apertou o diário contra o peito e começou a tremer.

— Quanto tempo — disse o Vulto. — Quanto tempo estive fora?

— Não sei — respondeu Gregoire. — Não sei de nada.

O silêncio vazou de dentro do capuz do Vulto e calou o vento, sussurrou vácuos nos ouvidos de Gregoire e rodeou a carroça de lona.

— Você dá carona a trevas — disse o Vulto.

— Não porque quero. Se eu soubesse que teria de ficar com eles, não teria recolhido ninguém.

O Vulto se moveu, o que foi muito assustador, porque parecia uma força, um femômeno, uma montanha e de repente estava andando, dando a volta na carroça e levantando a lona.

Gregoire se virou na boleia e levantou a lona do lado de cá. Dentro da carroça estavam dois homens: um grande, alto, de poderosos músculos. Devia ter sido negro quando tinha cor, mas agora estava completamente cinza e dava a impressão de que um sopro o desfaria. Carregava duas coisas: um arco negro e um homem branco.

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