Capítulo 51: Neville - As teias do tempo

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Neville não reconheceu a floresta onde estava. Não sabia se era dia ou noite porque as copas espessas tapavam o céu, o sol e a lua. Não havia vegetação rasteira, mas as raízes grossas estavam acobertadas por musgo gelado. O inverno devia ter acabado, pois não havia tormentas. Ou talvez as tormentas não conseguissem passar pela muralha de troncos antigos.

Por mais que caminhasse, Neville estava no mesmo lugar. Ele se movia, tinha certeza disso, mas não saía do lugar. Parecia ter sido sugado por areia movediça. Por trevas movediças. Neville ali não era ninguém, nem sequer existia.

Então, por que se movia? Neville percebeu uma massa branca também parada, sentada sobre um raíz grossa. Aquele musgo frio devia estar gelando as calças do homem coberto de branco.

— Olá — chamou Neville. A pessoa não se moveu e ele foi até ela.

As coisas brancas que cobriam o homem se misturavam com a barba dele, que se misturava com o cabelo num caos branco e grisalho que Neville logo reconheceu.

— Senhor mago — ele chamou.

O mago se sentava esmagado pelas camadas de teia branca. Neville estendeu a mão para levantar a estranha cortina. Assim que encostou nela, foi capturado. Ao invés de libertar o velho, ele ficou igualmente coberto num casulo de teias brancas.

— Olá — disse o mago. — O que temos aqui?

— Você está sonhando de novo?

— Estou acordado, e você?

— Também.

— Não parece.

— Nem você. — Neville empurrou com o cotovelo a teia que o cobria e tentou se ajeitar. — O que é isto?

— Séculos — disse o mago. — Há muito tempo era para eu ter virado pó e os séculos se ressentem de coisas que não deveriam vivê-los. Eles fazem um casulo — o mago juntou as mãos, emulando um casulo — que nem tronco de árvore quando cresce ao redor de um machado.

— Árvores crescem ao redor de machados? — perguntou Neville.

— Se não morrerem e se tiverem tempo, elas engolem aquilo que as magoa.

— E isto? — Neville continuava sustentando as teias com o braço, que começava a cansar. — Por que me engoliu?

— O tempo é volátil — disse o mago. — Ele é rápido e muda de forma a cada instante. Chegar perto é sempre um risco.

— Como faço para sair?

O mago passou a unha pela teia, desfiando centenas de fiapinhos brancos.

— Se ao menos uma história me puxasse à tona — ele disse — eu saberia o que fazer.

Neville fincou o arco negro na teia e usou-o para erguê-la, como se fosse uma tenda.

— Um arco mágico — disse o mago.

— Foi você quem me deu.

O mago sacudiu a cabeça.

— Eu não fiz nada. Ele é que me usou para chegar até você. As pessoas comuns pensam que só das trevas nascem criaturas, mas da magia também brotam coisas espontâneas que ninguém previu.

— Você parece não gostar do meu arco.

— Desconfio de tudo o que é mágico — disse o mago. — Quase todos os magos morreram de magia, a maioria antes mesmo de nascer.

— Este arco tem me mantido vivo na Boca da Guerra — disse Neville. — Graças a ele as trevas ainda não me engoliram. No seu sonho, você parecia gostar dele.

— Agora estou acordado. Mas a resposta está nos sonhos.

— Sonhos de quem?

— Todos os sonhos.

Neville empurrou as teias brancas com toda a sua força, mas elas não se moveram. Cutucou-as com o arco, mas elas pareciam gostar do arco e se contraíam como se sentissem cócegas.

— Precisamos sair daqui — disse Neville.

— Cedo ou tarde, Yukari vai me encontrar. Ela sempre me encontra.

Neville inclinou-se para o mago.

— Essa Yukari de quem você fala — ele lambeu os lábios — é Nakamura?

— Existe outra?

— Muitas. Várias mulheres em Tinsa afirmam ser a verdadeira Nakamura. Elas têm os mesmos traços, os olhos puxados, os cabelos pretos, o nariz pequeno.

— Yukari não gosta quando falam que o nariz dela é pequeno.

— Ela vai nos encontrar?

— Vai.

— Quando?

— Às vezes em alguns dias — disse o mago — mas houve uma vez em que ela levou uma década para chegar até mim.

— Uma década! — gritou Neville. — Não tenho todo esse tempo.

— Está com pressa de quê? De morrer esmagado por um dragão? Ele nem vai notar você, mas talvez o arco se finque nele que nem um espinho.

— Melhor morrer por dragão do que morrer por trevas.

— Acha?

— Você não?

— Hm — fez o mago.

— Certamente magia é melhor do que treva.

— A magia é água antiga — disse o mago. — De vez em quando ela afoga um ou mil, mas achamos normal porque ela está aí faz tempo. Do mar se espera maremoto; da terra, lava e terremoto. A treva é água nova, rio sem leito, onda sem escarpa. O mundo ainda está se ajeitando a ela, assim como o ar se espalha ao bater de novas asas. A magia não é a seu favor, arqueiro, nem a treva é contra você. A água apenas é: quem se afoga somos nós.

— Você está enganado — teimou Neville. — As trevas na Boca da Guerra matam e fazem sofrer. Elas impedem a guerra de chegar a um fim.

— Se eu moldo magia para fazer mal a alguém, a responsabilidade é minha, não da magia.

— Você acha que alguém controla as trevas? — perguntou Neville. — Quem?

— Não enxergo. Esses malditos séculos, empoeirando minha visão. — Deu um peteleco nas teias brancas. — A resposta está nos sonhos, mas eu não sei a pergunta.

Então, ele apertou os olhos amarelos e se levantou.

— Uma criatura mágica está se esgueirando por esta floresta afogada em trevas — disse o mago. — Que risco ela corre!

Neville se levantou como pôde, espremido pelos séculos ressentidos do velho mago. Ele se apoiou no arco e a teia se desfez acima dele. Havia uma árvore que não estava ali antes. Tinha madeira preta e folhas de um verde claro que brilhava nas trevas.

— Ela veio te buscar — disse o mago. — Você tem nome?

— Neville.

A árvore esticou os galhos e colheu Neville de dentro do casulo de séculos brancos.

— Eu também tenho nome — disse o mago — mas não lembro.

A teia se fechou ao redor do mago e a árvore começou a correr. As raízes rolavam pelo chão como uma dúzia de cascavéis. Neville se agarrou ao tronco, que formigou de medo. Estavam cercados por trevas e a árvore perdia forças como humano no fundo do mar. As trevas se agarravam a Neville e tentaram segurar a árvore, que deslizou e deslizou.

A floresta se fechou cada vez mais, a escuridão tomou conta de tudo. Não fazia diferença abrir ou fechar os olhos, Neville nada via. Mesmo as folhas fosforescentes da árvore mágica se apagaram uma a uma, como velas expostas a ventania. Neville encostou o rosto no tronco formigante e tentou pensar nas pessoas que amava.

Mas não conseguiu se lembrar deninguém.    

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