Capítulo 119: Até a Guerra acredita

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O córrego rebolava por entre colinas, através de campos, tropeçava em raízes nas florestas. A água roubava para si uns rasgos de céu e uns pedaços de nuvem, também umas pinceladas de galhos folhados, e seguia saltitando Franária afora, em direção ao Loefern e, então, ao Sangue.

Na direção oposta, seguiam dois viajantes. Um vulto sem rosto, negro como sombra sólida. Uma mulher abstrata e leve como um arco-íris com pernas.

— Precisa andar tão depressa? — perguntou Líran. Estava cansada.

O Vulto demorou alguns passos para responder.

— Estamos sendo sugados para o centro de um vórtex. Todos nós. Cada filamento desta história está tensionado. Ela pode se rasgar a qualquer momento. Sinto que se aproxima de um fim.

Líran agarrou a garrafinha de tinta dentro do bolso. Ela também sentia a proximidade de um fim. Que ansiedade não poder dar uma espiadinha no futuro.

Escrevi pouco quando me mudei para Chambert. Tinha em mira o papel principal do palco chamado Franária (na época eu não sabia que ela também era personagem na peça), papel que pertencia a meu irmão, Pierre. Eu, que nunca quis fazer nada do que ele fez, queria ser o que ele se tornou. No fim, até Frederico, o Fraco, foi rei, e eu mal preenchia papéis vazios com palavras em branco.

De onde vem essa ambição de ser uma coisa que nunca se tentou ser? Vejo isso em muitos homens e mulheres, essa inveja corrosiva e cega de 'Por que ele e não eu?' Ninguém enxerga os dragões que o outro enfrentou, ou as vidas que salvou, os sacrifícios. Vê-se apenas que ele é grande e eu, pequeno.

Nunca cheguei perto de Chelag'Ren. Jamais me ocorreu ir à Terra dos Banidos e encontrar uma escama. Escrever era minha vida, fazer história, a de Pierre. Quando a História aconteceu, porém, eu quis ser o olho do furacão.

Em minha defesa só posso afirmar que minha natureza é boa. Meus desejos é que são malignos. O mal é tão natural ao ser humano quanto o bem. Precisamos do bem, ou ao menos da decência, para viver em sociedade. Isso não significa que a erva daninha do mal não esteja se esgueirando em meio à grama verdejante do nosso dia a dia em comunidade. Significa apenas que fomos ensinados a cultivar grama e detestar mato. Para a natureza, é tudo planta.

Recusamo-nos, porém, a aceitar esse lado de nós mesmos. Escondemos os desejos mais mesquinhos, fingimos que nunca quisemos matar ninguém, recusamo-nos a escrever em nossos diários sobre a inveja que nos mastiga os intestinos. Envergonhamo-nos, enfim, dos sentimentos ditos malévolos. Deixemo-los para sempre no escuro, atrofiados, infantilizados, descontrolados.

Não me refiro ao mal verdadeiro, aquele que tortura, assassina, viola. Refiro-me ao mal indefeso de um irmão que se sente afrontado por receber tratamento diferente do de Pierre. Posso afirmar que, mais que inveja, foi a vergonha que preencheu meus dias em Chambert. Esforcei-me para fingir que eu não queria nada daquilo que eu imaginava acontecer a Pierre: morrer em batalha; ser assassinado por um espião de Henrique, depois de Fulbert e até de Adelaide; tropeçar e cair da muralha de cabeça para baixo. Imaginava-me ocupando seu lugar, lacrimoso pelo irmão perdido, então chorava de verdade com a perspectiva de perder meu irmão.

A Guerra estava mais próxima do que imaginávamos. Quem descobriu isso fui eu.

— Memórias de Gregoire (revistadas)

Da janela de seu quarto, Gregoire viu seu meio-irmão sobre a muralha externa, ao lado de Luc, o caolho.

Serei capaz um dia de curvar-me ao meu próprio irmão? Chamar Pierre e dizer, 'meu Mestre'?

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