Capítulo 93: Gaul

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As nuvens trovejantes não abalaram o humor de Gaul de Tuen, que assobiava pelas muralhas da cidade. Pierre tinha mudado tudo. Ele tinha autoridade, aquele rapaz, sabia o que fazer, era praticamente um mistério. Ah, olha só pra isso! Tuen e Chambert unidos, Olivier longe dali. Gaul parou de assobiar quando lembrou de Maurice, de Joanna limpando como se o sangue do prefeito estivesse nos veios de madeira das mesas da Pluma. Nem mesmo Pierre pôde impedir a morte de Maurice. Que tempos vivemos.

Que outros tempos havia? Gaul não sabia que tudo estava errado até encontrar Pierre. Quer dizer, ele achava que as coisas não estavam certas, mas não enxergava além da superfície. A treva estava profunda e há muito tempo a Franária perdeu o pé. Pierre ajudou ele a perceber isso, mas Gaul não se desesperou. Pierre expôs a verdade horrível, a doença que consumia a Franária, mas Pierre era também o antídoto, que nem um rasgo na pele feito por um cirurgião.

Eles derrotariam Fulbert. Nenhum rei da Franária tinha chance contra Pierre da Fronteira. Gaul se debruçou numa ameia e viu Pierre vindo a cavalo de Chambert. Havia futuro. Com Pierre ali, Tuen tinha futuro. A Franária tinha futuro.

Naquela manhã o céu era uma avalanche de nuvens. O cavalo tentou empinar quando Pierre foi montá-lo. Neville ajudou, segurando as rédeas.

— Calma, amigo — Pierre acariciou o pescoço do cavalo. — É só uma tempestade.

Neville ajudou Pierre a montar (— Não sou grande cavaleiro — disse Pierre — sempre fiz tudo a pé.) e subiu a muralha de Chambert para ver Pierre cavalgar a passo, quase mais devagar do que se estivesse a pé na estrada para a Tuen. Viu Gaul no muro da cidade acendando para Pierre. Neville lançou um olhar para o vento. O que chegaria primeiro em Tuen: a tempestade ou Pierre?

Na estrada, o cavalo de Pierre empinou, gritou e disparou em direção a Chambert. Pierre saltou e correu para Tuen. Por que ele estava correndo? Por que o cavalo estava assustado? No céu, as nuvens se moveram como que sugadas, então incharam, uma bolha cinza que explodiu em vermelho. O cabelo crespo de Gaul virou fumaça. O fogo não chegou a tocá-lo, Gaul perdeu a cabeleira só com o calor da rajada que passou por cima dele.

O fogo se esparramou como água por Tuen. Gaul não sentiu a própria cabeça queimar. Lá embaixo um homem derreteu, sumiu. Não cheirou a cinzas nem carne queimada. O calor queimava até os cheiros.

Então veio um vento forte e os trovões mansos, ritmados de gigantesgas asas batendo. As nuvens se rasgaram, e Gaul soube, mesmo antes de ver, que sua morte tinha asas de plumas brancas. Seus olhos fugiram do dragão, procuraram a estrada. Lá. Pierre corria para salvá-lo. Vamos, garoto, você consegue.

Pierre viu Gaul abrir a boca. Parecia sorrir, parecia encorajar. Então o dragão pousou, esfarelou com as garras a muralha e Gaul de Tuen.

Neville correu para o portão de Chambert, passou pelo cavalo assustado e viu Pierre correndo para baixo da implosão de nuvens. Saiu correndo Neville também, gritando o nome de Pierre e:

— Volte! Fuja!

Num repente, as nuvens incharam, uma bolha cinza que explodiu em vermelho. Como sangue de uma ferida, fogo se derramou sobre Tuen. Vento forte, trovões mansos, ritmados. Asas brancas dilaceraram nuvens, escamas vermelhas refletiram as chamas mais altas que os muros de Tuen.

Pierre correndo, sempre correndo. Neville gritando seu nome e — Volte. Fuja.

Então Neville desistiu de gritar, corria apenas, mas estava longe, e Pierre praticamente embaixo do dragão. Ainda assim, só podia correr, porque não correr era desistir e Neville já havia desistido tanto. Pierre não. Pierre não! Se alcançasse Pierre, só faria morrer junto. Ainda assim, corria.

O dragão levantou voo, escancarou a bocarra. Pierre tão pequeno, agitando os braços. Neville não viu atrás dele, nos portões de Chambert, aparecer Vivianne.

— Então foi isso — ela disse e ele não ouviu. — Foi isso o que a Caravana viu.

Um homem correndo em direção aodragão. Dois homens correndo em direção ao dragão. Uma cachoeira de fogodespencou e esmagou Pierre.    

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