Capítulo 68: Jean - O cheiro de Pierre

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Jean sentiu o cheiro de Pierre mas Pierre não estava lá. O cheiro estava nos homens queimados, em Maurice, em Gaul de Tuen. Jean se esgueirou perto das paredes, nas sombras, ameaçado pelo cheiro, pelo peso de Pierre que não estava ali.

Maurice era o mais agitado. Parecia abelha tonta batendo em tudo quanto era flor. Bojet e Germon bebiam em silêncio, assistindo o rodamoinho de gente e esperança, fome de mudança. Gaul de Tuen bebia com eles, também em silêncio, e o soldado Manó de Fabec estava encostado à parede, braços cruzados, olhando. Lá em cima um pai e uma filha se reuniam. Ambos quebrados, doentes, mas juntos.

E Pierre.

— E agora? — perguntou Gaul.

— Continuamos seguindo Pierre — disse Germon.

— Resta saber se ele seguirá a guiar-nos — disse Bojet.

Jean fechou as mãos, seus braços ficaram parecendo duas toras peludas. Ao seu lado o caolho Luc, impassível. Leonard, sumido. Minutos se passaram antes que o Acidentado aparecesse na escada. A barba de Jean se eriçou. Leonard estivera no andar de cima, com Pierre.

Jean tinha de sair dali. Esperou à porta, os punhos brutos tremendo, unhas cavando a carne calejada. Muito tempo se passou até Leonard perceber e se juntar a ele.

Luc demorou ainda mais. Palavras como justiça, finalmente e será? transbordavam na Pluma e ficaram presas nas dobras dos ouvidos do caolho. Impressa no branco do olho ficou a imagem de Maurice, sentado triunfante ao balcão de Joanna, rindo para Luc.

Rindo de Luc?

Não. Maurice mudou muito pouco durante o tempo em que Luc esteve em Patire. Para Maurice, Luc ainda era família, mas Luc não tinha família. Ele aprendeu que coisas de que se gostam, no fim viram todas mágoa. Seguiu Jean para a rua.

— Você não vai atrás dele? — Joanna perguntou a Maurice.

— Nada do que eu disser vai fazer diferença. Ele precisa se convencer sozinho. Tudo o que eu posso fazer é continuar mostrando que existe... nem sei o que existe. Até pouco tempo atrás, nem eu acreditava que isso existisse, mas olhe para nós.

Joanna esfregou com o pano um pedaço limpo do balcão. Maurice segurou a mão dela.

— Olhe para nós, Joanna.

Joanna ficou imóvel.

— O que você tanto limpa? — ele perguntou. — Sempre quis saber.

— Sangue — ela disse. — Se eu paro de limpar, as coisas sangram.

O dedão dele massageou o punho dela.

— Foi por isso que você deixou a Caravana? — ele perguntou. — Eu lembro do ano em que Rimbaud foi embora e você ficou. Naquele tempo, você limpava mais. Foi quando seus dedos formaram estes calos. A Caravana, naquele ano, estava metade do tamanho que tinha no ano anterior.

Joanna apertou os lábios. Evitou piscar para não derramar lágrimas. Foi uma epidemia em Qoniadra. A pele rachava e o sangue escorria. Não era possível estancar. Eles sangraram até a morte por aquelas rachaduras na pele. Joanna limpava e limpava, mas o sangue não parava. Morreram amigos, morreram os filhos, morreu tudo o que Joanna amava. Despois disso, ela não tinha mais forças para viajar. Ela, que tanto queria ver o mundo, perdeu o seu mundo.

Maurice se levantou, pegououtro pano e começou a limpar o balcão ao lado de Joanna.    

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