Capítulo 10: Neville - Cores

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Maëlle voltou de viagem e encontrou aberta a porta de casa. Lá dentro, de costas para ela, Neville dava comida ao pai. Os papéis que Neville comprou dois anos antes jaziam esquecidos na estante, debaixo de uma caixa com lápis afiados, nunca usados. Ao lado, argila rachada de seca, cinzel, lixa, pedra crua, madeira podre. Tudo esbranquiçado por poeira diáfana. Dois anos de tentativa de mostrar ao pai um caminho. E o capitão sem pernas sempre à janela, com o olhar empoeirado gritando Por quê...?

Maëlle entrou em casa e fechou a porta. Neville, ao ver a mãe dentro de casa, enxugou um fio de sopa no queixo do pai e foi ajudá-la a tirar a mochila das costas, descalçar os sapatos. Ele ofereceu água para ela lavar o rosto, que estava quase branco de tanta poeira, e água para ela beber. Maëlle cheirava a céu aberto, mas não era um cheiro agradável e livre; ela cheirava a morte distante e cansaço.

Maëlle sentou-se à mesa, ao lado do marido, que não a viu. Ela havia partido com dois objetivos: descobrir o que havia realmente acontecido com o marido e encontrar um médico da mente que pudesse ajudá-lo. Os soldados que o trouxeram para casa no dia em que ele perdeu as pernas foram todos mandados para a Boca da Guerra antes que Maëlle pudesse conversar com eles.

— Tem fome? — perguntou Neville. E: — Como foi de viagem?

Ela contou:

— Primeiro, eu fui a Fabec. — Os dedos dela se encresparam, os olhos ficaram duros, porque Fabec ficava na Boca da Guerra. — Aquele lugar é um túmulo aberto — ela disse. — Uma vala comum para os soldados de toda a Franária. Perguntei pelos soldados de seu pai. Estavam mortos, os seis. Não consigo lembrar o nome do soldado que falou comigo. Tenho a impressão de que ele também estava morto. Só a pele ainda vivia e a boca se movia por hábito. Os olhos já haviam morrido e o coração também. Tive medo de passar a noite em Fabec. Parti no mesmo dia, dormi ao relento. A grama onde me deitei era feita de espinhos e menos verde que a grama aqui em Debur.

"Caminhei então para o sul. Não existem mais em Baynard médicos especializados na mente. Ouso dizer que Deran e Patire também não mantiveram os conhecimentos de Sátiron. A guerra aniquilou as universidades da Franária. Mas eu pensei: 'existe um lugar na Franária onde a guerra não chega.'

Neville franziu a testa, tentando acompanhar o pensamento da mãe, que jorrava da boca feito inundação. A Franária inteira estava em guerra. Mesmo Deran, que raramente enviava soldados à Boca da Guerra, defendia o norte das invasões constantes de Farheim e Inlang. Em Baynard e em Patire não existiam refúgios. Então ele se lembrou de uma coisa que Lecoeurge contou. Toda vez que a caravana de Rimbaud visitava Debur, Neville ia tocar violão para o palhaço sem braços e Lecoeurge, enquanto escovava o chapéu roxo feito a mão em Sejo Tíen, contava histórias sobre os lugares que a caravana havia visitado. Ele contou sobre um homem em Coniadra, que havia encontrado um artefato mágico da época do Império e, sem treinamento nenhum, — pois não existem mais escolas de feitiçaria — tentou usar o artefato.

— Eu o vi — disse Lecoeurge, sombrio. — Os joelhos dele se dobraram para trás e os cotovelos ficaram soltos, de forma que os braços se moviam como cataventos. Mas isso não me assustou tanto quanto a Fronteira — contou o palhaço. — Rimbaud diz que lá é o único lugar verdadeiramente seguro em toda a Franária, mas não é à toa que nenhum dos três reis quer saber de lá. Eu não consegui dormir uma noite sequer. Mesmo acordado, eu tinha pesadelos.

Neville se lembrou dessa conversa quando viu as pupilas da mãe dilatarem de medo, porque as pupilas de Lecourge fizeram a mesma coisa quando ele falou no tempo que passou acampado na Fronteira. A guerra não chegou ao sul da Franária porque todos os reis tinham medo de lá.

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